Fotografia de Ian Britton
Saiu
do tribunal apressada, mas, apesar da sensação de alívio, sentia
uma pedra dura dentro do seu peito. O advogado do processo de
divórcio acompanhou-a ao carro, numa lengalenga sobre recursos,
trâmites em julgado e mais uma parafernália de termos jurídicos
complicados que nem sequer entendia. Como pudera ser tão enganada?!
Despediu-se do jurista com um aperto de mão, prometendo telefonar em
breve, entrou no veículo cinzento metalizado e ligou a ignição.
Rumo à planície alentejana, a terra que a vira nascer e crescer...
Apaixonara-se
pelo marido (agora ex) logo no primeiro encontro,
após alguns meses de troca de mensagens via Internet. Como
professora do primeiro ciclo, a sua vivência era
essencialmente casa e trabalho, mais rodeada de crianças e mulheres
que outra coisa. Alberto era alguns anos mais velho, mas possuía
todos os predicados que sempre desejara no seu “príncipe”:
bonito, inteligente, simpático e agradável, além de empresário de
sucesso, só tinha pontos a favor. Excetuando o pouco tempo
disponível para namorar, com negócios que desenvolvia em vários
países e múltiplas viagens, parecera-lhe perfeito, sorte fora
encontrá-lo. Casaram!
Os
primeiros anos de vida em comum tinham sido de paixão - ou assim
ainda o julgava - apesar de ele não estar sempre presente. Como não
estivera no nascimento do primeiro filho. Nessa altura resolveram que
ela deixaria de trabalhar durante uns tempos, para acompanhar o
desenvolvimento do bebé. Dois anos depois nascia o segundo e ela
continuou em casa, um apartamento de luxo numa torre das melhores
zonas de Lisboa, com todas as mordomias de uma empregada diária, que
tratava das lides domésticas. Porém, o marido ausentava-se cada vez
mais, passavam semanas em que nem sequer o via, incluindo sábados e
domingos. Ele repetia que era a crise que o obrigava a uma maior
competitividade e ela não tinha razões para duvidar. Mas notou o
facto de ele já não a procurar na cama, invariavelmente tinha dores
de cabeça ou adormecia. Apesar das suas várias tentativas de tornar
o ambiente mais romântico, com jantares à luz das velas ou uma
lingerie mais diáfana e sedutora na hora do deitar...
Estacionou
frente à vivenda do pai, onde agora vivia, e entrou. O silêncio
ecoava naquelas quatro paredes - o pai certamente ainda estaria no
emprego, os filhos talvez já tivessem saído da escola, pois a tia
Eunice ficara de os ir buscar, só a esperavam depois do jantar. Tomou
um duche rápido, mudou para uma roupa mais leve e informal e decidiu
ir até à cidade, onde comeria qualquer coisa numa esplanada. Afinal
até estava com fome, não tinha conseguido almoçar com o nervosismo
da audiência que a esperava. Lágrimas já gastara todas nos últimos
anos, decidira que jamais voltaria a deitar uma por Alberto!
-
Emília, és mesmo TU?! - exclamou uma voz entusiasmada à frente
dela, o que a fez levantar os olhos do livro que estava a ler.
Reconheceu a antiga amiga e colega de escola e, tímida como sempre,
sorriu. Mas Filomena não era dada à timidez e, assim que percebeu
estar certa, quase a içou da cadeira da esplanada num enorme abraço,
enquanto lhe pespegava sonoras beijocas nas bochechas. Depois desabou
na cadeira ao lado e, em ritmo ininterrupto, foi exclamando: “Que
caloraça, quase me esquecia como junho é quente aqui em Portugal!
Vou pedir uma imperial, também queres? Conta-me tudo, tudo o que
tens feito! Ó faxavor, queremos duas imperiais e um pires de
tremoços! Então, quais são as últimas novidades?”
Ligeiramente
atrapalhada, Emília só conseguiu murmurar: “Divorciei-me hoje!”
A amiga olhou-a espantada durante alguns segundos e acrescentou:
“Quem foi o traste que se quis divorciar de ti? Conheço?” Acenou
que não e, comovida com a confiança daquela amiga do passado, foi
desenrolando a sua história, em traços largos. Partira para a
capital para estudar e tornar-se professora primária, que tinha sido
feliz no exercício da sua profissão, mas que se sentira muito só e
com poucos amigos... E aí conhecera Alberto, mas ao fim de poucos
anos de casamento o desencanto e a desilusão foram ganhando espaço
e crescendo intimamente. Já não era possível ignorar a indiferença
dele, para com ela e para com os filhos, que estava a criar sozinha.
Mas, dependente dele para todos os efeitos, não quisera
prejudicar as crianças. Vivia praticamente isolada lá no alto da
sua torre luxuosa, em redor dos filhos pequenos, sem a cabeleira da
Rapunzel que lhe desse alguma esperança de ser salva – o seu
príncipe estava desencantado!
Tímida
e submissa como era, nunca antes tinha pensado resistir às vontades
do marido, mas naquele dia disse-lhe que não, que tinha outro
programa diferente do que ele estipulara – tinha marcado um lanche
com antigas colegas da escola em que lecionara, pois era o
aniversário de uma delas. Ele zangou-se, mas ela saiu à mesma.
Quando já estava na garagem e se preparava para entrar no carro, ele
surgiu por trás dela, agarrou-a por um braço e gritou aos seus
ouvidos: “Tu não vais a lado nenhum! Mas afinal quem manda aqui?”
Tentou livrar-se daquela mão que a estava a magoar, o que só serviu
para ele a apertar ainda mais. E, de repente, ele estava a arrastá-la
na direção da arrecadação, empurrou-a lá para dentro e trancou a
porta à chave do lado de fora. Gritou, esmurrou a porta, mas nada:
ele tinha ido embora! A sua mala tinha caído no chão durante a refrega, não tinha sequer o telemóvel para pedir ajuda a alguém.
Duas horas depois ainda lá estava, até que começou a ouvir alguns
ruídos inusitados e a lâmpada da arrecadação apagou-se.
Assustada, gritou a plenos pulmões por socorro, e, por fim, ouviu
uma voz: “Está aí alguém?” “Tirem-me daqui, tirem-me daqui”,
gritava completamente em pânico! A porta foi arrombada e ela saiu
do seu cativeiro tão trémula, que teve de ser amparada pelos
bombeiros até à rua. Não tinha notado o cheiro a queimado, mas
facto é que um incêndio no primeiro andar do prédio motivara o aparecimento destes, que tinham desligado a eletricidade do edifício e apagado o
fogo rapidamente. Mas um deles ouvira os seus gritos, através das
saídas de ventilação da garagem, e resolvera indagar.
Era
impossível saber quanto tempo o marido tencionara deixá-la trancada
de “castigo”, mas estava longe de lhe dar nova oportunidade para
tal. Chamou a polícia, relatou o ocorrido, os agentes tomaram nota
do testemunho do bombeiro e ainda a escoltaram até casa, onde
apressadamente encheu duas malas de roupa dela e das crianças –
felizmente, o marido estava ausente! Depois de apanhar os
filhos que brincavam com um amigo que residia na vizinhança, partira
rumo à sua terra natal, onde sabia que o seu pai os receberia de
braços abertos...
- Bolas!
- exclamou Filomena – Esse gajo era um autêntico psicopata! E agora, que vais fazer?
Sorriu. "Vou criar os meus filhos e trabalhar! Mas casamento... nunca mais!"
Trata-se de mais uma blogagem coletiva - na segunda fase da série "Amor aos Pedaços", subordinada ao tema "Desencanto"- numa promoção conjunta dos blogues da Luma Rosa, da Rute e da Rosélia. Ah, e a história em si não é verídica, é um apanhado de várias histórias cruzadas, que infelizmente acontecem por aí...
Não é veridica?Se calhar até é mais do que pensas...
ResponderEliminarO que talvez não seja tão verídico é a decisão rápida e mantida de deixar a criatura...
Bom resto de domingo
Está uma história muito bem contada, Teté! E infelizmente, apesar de fictícia, podia ser bem real.
ResponderEliminarE há continuação? É que estava pronta para continuar.
ResponderEliminarAbraço : )
Felizmente que a histórica não é verídica.
ResponderEliminarAcredita que já estava com o coração aos saltos a imaginar tamanha desgraça.
Infelizmente há históricas verídicas bem piores.
Beijinho
Teté, por acaso essa não é verídica, mas muitas o são... acontecem muitas histórias assim! Bela participação! Bjks Tetê - Avaliando a Vida
ResponderEliminarUma história que não sendo verídica, o é... e muito bem contada.
ResponderEliminarOlá, querida
ResponderEliminar"Tu és o orvalho que me beija"...
(Meliss)
Em pleno período pascal nos reencontramos para tecer o nosso Desencanto... entrelaçar partilhas de coração a coração...
Como não acreditar num fato verídico que está sob nosso olhar diariamente???
As tranças da Rapunzel são podadas mas tem Alguém mais Esperto que sempre trará uma escada e nos fará ascender de qualquer situação de perigo que nos ronde... como esa ou outra..
Feliz Bombeiro que nos salva...
Obrigada por sua participação e nos vemos no próximo mês se Deus quiser!!!
Bjs de Paz e Esperança junto com o meu carinho fraterno
"Meu coração orvalhado
pleno de gratidão,
agradece a Deus"...
(Élys)
Não é verídica, mas podia muito bem ser, Teté.
ResponderEliminarE contou-a muito bem, prendendo-nos na leitura até ao final.
A tua história pode não ser verídica, mas o que não falta por esse mundo fora são histórias iguais à que contas...
ResponderEliminarGostei muito da tua história, muito bem contada :)))
Espero que as Emílias verdadeiras consigam ser felizes :)
Beijinho :)
Bom pedaço de ficção que podia não o ser. São salutares estes exercícios colectivos, Teté
ResponderEliminarNão é verídica no sentido de não conhecer nenhuma história exatamente assim, SÃO, mas como refiro é um conjunto de várias histórias numa, que fui ouvindo por aí...
ResponderEliminarTenho para mim que quando as situações chegam a este ponto, não há volta nenhuma a dar, só podem é descambar mais...:(
Bons sonhos! :)
Como alguém já referiu, TONS DE AZUL, há histórias ainda mais assustadoras. Basta ver o número de mulheres assassinadas anualmente pelos próprios companheiros, em Portugal... :S
ResponderEliminarNão, não tem continuação, CATARINA! Essa fica a cargo da imaginação de cada um... :)
ResponderEliminarÉ como dizes, SONHADORA, há histórias bem piores, que muitas vezes acabam em tragédia, após anos e anos de maus tratos... :((
ResponderEliminarMesmo assim, já é assustadora q.b.!
Beijocas!
Acontecem tantas histórias assim e piores, TETÊ, que esta é um mero esboço de uma realidade que encontramos em cada esquina. Haja a inteligência de nenhuma mulher se rebaixar aos brutamontes que por vezes tem em casa... ;)
ResponderEliminarBeijocas!
Obrigada, LUISA! Infelizmente, a história espelha alguma realidade que nos rodeia... ;)
ResponderEliminarInfelizmente, ORVALHO, histórias destas estão debaixo dos nossos olhos diariamente. Por vezes fingimos que não as percebemos, outras as próprias infelizes fazem por esconder essa triste realidade, por vergonha...
ResponderEliminarQue hajam "bombeiros" que salvem as mulheres que caem nestas vivências inglórias!
Beijocas!
Infelizmente, CARLOS BARBOSA DE OLIVEIRA, podia ser mesmo verídica...
ResponderEliminarObrigada! :)
Pois não faltam, MARIA, algumas com contornos ainda mais dramáticos e que se arrastam por anos e anos, com todas as desculpas e mais algumas e aquela estúpida esperança que homens destes um dia mudem o comportamento. A má notícia é que não mudam, a tendência é apenas para piorar... :S
ResponderEliminarEstá na mão das Emílias deste mundo tentarem ser felizes. Começa por se livrarem dos brutamontes, depois... logo se vê! :)
Obrigada e beijocas!
Já não sei quem é que disse que a realidade por vezes ultrapassa em muito a ficção, VIC! E eu concordo... ;)
ResponderEliminarTambém acho piada a escrever sobre um tema! Sendo ele fácil como este, porque se fosse sobre, digamos, física quântica, passava... :D
Uma história que poderia ser comum a tantos de nós, os que não se coíbem de o dizer e aqueles que se escondem atrás de relações que dizem perfeitas...e que o não são.
ResponderEliminarA propósito deste tema, ontem a minha comadre estava desolada porque o único casal por quem punha as mãos no fogo se separara. Era fachada a mais.
O que questiono, nos dias de hoje, é esse laisser faire, laisser passer, só porque é mais cómodo.
Enfim. Belíssima narrativa!:)
bji gde
Teté,
ResponderEliminarBelíssima história, cativou-me da primeira à última linha.
Infelizmente histórias destas passam-se todos os dias.
Eu não me atreveroia a dizer que esta história não é verídica. Infelizmente o que não faltam são Emíliaspor este mundo de Cristo. Escondidas atrás do medo e da vergonha de contarem o que sofrem.
ResponderEliminarUm abraço e uma boa semana
Boa história e infelizmente de demasiado real :s
ResponderEliminarA tua comadre que tenha juízo, que neste capítulo não se põe as mãos no fogo por ninguém, nem por nós próprios, NINA: nunca sabemos o dia de amanhã, se outra pessoa se atravessa no caminho, se por qualquer razão a relação não azeda, descamba nesse desinteresse total, etc. e tal... :S
ResponderEliminarAgora que há aí muita gente a viver de fachada, ou que só não está para se chatear a dividir os tarecos e deixa andar um casamento já sem a chama sequer de um fósforo, não tenhas dúvidas.
Basta ver a quantidade de casais, num restaurante ou café, por exemplo, que estão ali de ar enfastiado e nem conversam um como o outro... ;)
Obrigada e beijocas!
É verdade, RAINHA, histórias destas são mais comuns que o desejável... ;)
ResponderEliminarBem-vinda, GEIZA!
ResponderEliminarÉ verdade, não deixa de ter muitos pontos em comum com casos reais... :(
Beijocas!
Bem-vinda, ELVIRA!
ResponderEliminarEsta história especifica, tal como a contei, não é verídica, embora cruze outras reais. E sim, infelizmente também há quem esconda a infelicidade atrás de aparências, por medo ou vergonha. O que ainda me parece pior, pois trata-se apenas de um prolongamento da infelicidade, quando não acaba mesmo em tragédia!
Abraço e boa semana para ti também!
Infelizmente tem muitas coincidências como real, sim, LOPESCA! ;)
ResponderEliminarOi Teté,
ResponderEliminarsó agora consegui chegar aqui. Estou seguindo a ordem numerica da lista de participações.
Xiii essa história é forte! Parece um filme, um drama!
Por acaso, sábado ouvi algo parecido, uma rapariga que conheci no workshop de sábado que falou que o marido batia nela e ela não conseguia sair do casamento apesar do desencanto se ter instalado faz tempo.
Coitada, sair do casamento ela saiu mas está com cancro no peito motivado pela vida amargurada que levou.
Beijinhos além-mar para você.
Continuemos juntas à redescoberta do amor.
Rute
não posso deixar de ter pena do Alberto. Parece ser um tipo trabalhador e acabou por perder uma boa esposa :P
ResponderEliminarInfelizmente, há muitas histórias que são semelhantes a esta, pelo menos em parte. Mas... quem sabe? A seguir a um desencanto, pode surgir uma nova esperança!
ResponderEliminarBeijinhos.
RUTE, tal como já referi em comentários anteriores, há histórias reais bem mais dramáticas que esta, com anos e anos de maus tratos, físicos e não só... :S
ResponderEliminarComo a que contas!
Beijocas para esse lado do oceano!
E continuarei, sim, nesta vossa iniciativa de escrever sobre "Amor aos Pedaços" (uns melhores que os outros)... :)
Morro de pena pelos "Albertos" deste mundo, MOYLITO, como bem deves calcular... ~xf (a assobiar)
ResponderEliminarPode sempre surgir uma nova esperança, TERESA, haja capacidade para ultrapassar estes desencantos... ;)
ResponderEliminarBeijocas!
Contou tão bem, que me pôs a chorar! Caramba, pensei que tudo tivesse acontecido com você e coração ficou pequenininho.
ResponderEliminarAcredito que tenha muita mulher subordinada aos caprichos e desdecho de homens que não valorizam o cotidiano familiar. Muito tempo fora de casa, não captam os valores.
Beijus,
Felizmente não foi comigo, nem com ninguém em particular, LUMA! Embora esta história tenha componentes de várias outras, de que fui tendo conhecimento ao longo do tempo...
ResponderEliminarEsperemos, sim, que as mulheres de um modo geral queiram ser mais do que meras reprodutoras e mantenham ideais de vida mais elevados! :)
Beijocas!