"Recortado no horizonte, sentado sobre as patas traseiras no cimo da escarpa, o lobo levantou o focinho aos céus. Soltava um uivo de mau agoiro que se dissolveu nos silvos da ventania rasgada pelas arestas afiadas dos penhascos que apertavam o Rio. Soprava de nortada, gelado e rijo, em vagas alteradas, vergando o que restava das videiras, encarquilhadas e retorcidas, roídas na alma e na seiva pela fúria da praga que ainda há pouco chegara, vinda das encostas do Peso e do Pinhão."
Assim começa este romance de
Francisco Moita Flores (com enredo policial, note-se!), que nos leva ao mundo da Ferreirinha e do seu combate à filoxera nas margens do Douro do século XIX, enquanto a populaça persegue e mata lobos de contornos demoníacos, segundo as superstições comummente aceites por padres, bruxos e pelo barbeiro-regedor,
"homem de verdades feitas", na crença de serem os culpados da morte de algumas raparigas da região. Quem não acredita nisso é Vespúcio Ortigão - um bacharel (graças à generosidade de D. Antónia em pagar-lhe os estudos), depois de uma infância de mendicância e penúria, devida à morte do pai, cónego de Trancoso - que dá os primeiros passos na investigação criminal, tal como hoje a conhecemos.
Contudo, "não se admirava o jovem advogado da vaga de medo cuspida pela autoridade do barbeiro. Cada comunidade era um mundo fechado sobre si, que as montanhas separavam de outros mundos, ao mesmo tempo que retinham a história, permitindo que o velho tempo medieval resistisse às arremetidas da racionalidade."
Embora possa nunca ter referido aqui, aprecio bastante a escrita de Moita Flores, simples e clara, por vezes quase poética ou irónica, mas muito agradável e compreensível por todos. Nestas 318 páginas o protagonismo é dividido por D. Antónia Ferreira, com o seu amor às terras e vinhas do Douro, e por Vespúcio Ortigão, tido como doido pela maioria do povo, dadas as suas ideias avançadas para a época (fruto de muitas e variadas leituras)! Mesmo incompreendido não esmorece e o final... é para quem o queira ler!
Citação (só mais uma!):
"[...] Esta gripe pode também surgir como um sinal de 'Morbus litteratorum'.
Foi Crisóstomo quem perguntou:
- O quê?
- Uma doença que ataca pessoas que estudam ou escrevem em excesso. Os humores precipitam-se, o espírito descontrola-se e os órgãos perdem a vitalidade. Foi a doença que vitimou Pascal, que antecipou a morte de Mozart e de muitos outros iluminados. É uma doença que é um castigo directo porque quem se apaixona pelo saber até aos limites da cegueira não cumpre o respeito que merecem dias santos e festas de guarda, absorvido pelo entusiasmo que mais não é do que o sintoma maior da doença."
MUITO BOM!