Assentei malas e bagagens naquele café de bairro de Benfica em finais de 1977, decorria então o primeiro ano do famigerado propedêutico, inventado pelo ministro da Educação da época - Sottomayor Cardia - que não servia rigorosamente para nada, para lá de atrasar o ingresso na universidade. As aulas eram leccionadas via televisão, das 9 horas ao meio-dia e picos, os programas das disciplinas ainda estavam a ser engendrados, os "alunos" sabiam apenas que existia uma longa lista de livros para ler a Língua Portuguesa (comum a todos) e dois exames em datas a estipular. De cuja média ponderada com a do liceu daria a nossa nota de acesso à faculdade que pretendíamos frequentar, que a outra novidade inventada pelo ministro era a dos numerus clausus.
Certo é que para evitar preguicites de levantar cedo para ver televisão em casa - com escasso interesse por matérias que eram quase uma recapitulação - combinei com algumas amigas reunirmo-nos todas as manhãs para assistir às aulas: um dia em casa de uma, outro na de outra e assim sucessivamente. Encontrávamo-nos para beber o café lá no estaminé, antes de seguirmos para a frente do televisor. Ou de um baralho de cartas. O que nunca faltava era um reconfortante chá com torradas lá para o final da manhã e muitas conversetas e risotas. Adiante!
Embora o local mais parecesse uma leitaria de bairro, os patrões ostentavam no toldo amarelo os dizeres "Pastelaria fina", a par de um nome comercial igualmente pomposo, mas que mais tarde alcunhámos carinhosamente de "Entulho". Apesar dessa pretensão dos donos, o ambiente era soturno: de um lado a única montra e a porta de entrada, um pequeno balcão alto e metálico logo ali a tapar parcialmente a luz do corredor estreito que se seguia; do outro lado uma vitrine onde se exibiam caixas de bombons, chocolates, caramelos e boiões de rebuçados, a separar as mesas iniciais das restantes onde era permitido estudar; ao fundo e a toda a largura uma espécie de janela junto ao teto, de vidro martelado e num tom lilás, mas que nem a um jogador de basquete permitia ver o exterior; também ao fundo duas casas de banho de um lado e uma porta de acesso a um armazém na cave do outro; e as paredes forradas a linóleo azul acinzentado não contribuíam em nada para a luminosidade do ambiente, as múltiplas manchas acumuladas de infiltrações ou outros pequenos incidentes também não.
Teriam passado talvez uns 11/12 anos desde que me tornara cliente habitual - foi lá que estudei durante todo o curso, mas, acima de tudo, tornou-se ponto de encontro com grupos de amigos (estudantes ou não) dessa época - quando num sábado à tarde cheguei lá e bati com o nariz na porta. Já trabalhava na altura e a assiduidade diminuíra, mas rara era a noite que não passava por lá, daí não entender o desconhecimento da novidade. O que tinha acontecido? Um qualquer antepassado da ASAE visitou o estabelecimento e alvitrou que necessitava de grandes obras para manter o alvará (ou coisa), quando não seria encerrado. E entraram em obras durante largos meses, pelo menos durante todo o verão desse ano, salvo erro só reabriram lá para outubro ou novembro.
Óbvio que não perdi o contacto com os amigos mais próximos, mas de outros fui perdendo o rasto. Até que o "Entulho" reabriu luminoso como nunca, dada a multiplicidade de luzes, o longo balcão envidraçado (e frigorífico) ao longo de quase todo o corredor, as superfícíes espelhadas na parede detrás dele onde se exibiam garrafas para venda, mesas e cadeiras novas mais confortáveis, quase tudo tinha mudado. Muito mais moderno, mas efetivamente a lembrar um pouco uma árvore de Natal...
O que é não mudou? A dimensão da montra, obviamente, a espécie de janela ao fundo (embora tenha a vaga sensação que os vidros martelados foram substituídos por outros idênticos e sem cor) e a vitrine dos chocolates e companhia, que continuava a dividir as quatro mesas da entrada das restantes agora no lado oposto, mas só lá mais para as dos fundos é que se podia estudar, o número total de mesas reduzira significativamente. Nos meses seguintes continuou a ser ponto de encontro costumeiro, senão diário, pelo menos nas noites de sexta-feira e sábado, mais convidativas para novas borgas ou noitadas.
Numa dessas noites, apareceu lá um cliente desconhecido, a querer apresentar uma reclamação no livro: comprara uns chocolates na semana anterior, para oferecer aos filhos de um amigo que morava ali perto e o convidara para jantar, para descobrir, estupefacto, que as tabletes estavam bichosas! O patrão de serviço demorou a acalmar a irritação do cliente, a nós só dava para rir: raramente abriam aquela vitrine, antes ou depois das obras, facto é que apesar do investimento avultado na renovação da decoração, o stock da chocolataria devia ser o mesmo de sempre...
Igualmente e como é hábito neste país, o tal ano propedêutico de outrora - inútil em termos de conhecimentos - mantém-se até hoje. Só mudou de nome para 12º ano de escolaridade!
NOTA - Este foi o texto com que participei na amena cavaqueira domingueira "Rua dos Cafés", publicado no domingo passado no blogue "crónicas on the rocks" do Carlos Barbosa de Oliveira. Fica para quem não leu, sugerindo a todos que queiram participar que sigam os links.
Imagem da net.
Eu espanto-me como é possível ter havido tanta reforma em Educação no nosso país, francamente.
ResponderEliminarEnfim, mais uma das nossas originalidades....
O texto , também já o comentei - como deves ter visto - no blogue do Carlos, onde também aparecerá a minha aventura.
Bom dia, linda.
Oh, SÃO, cada um que lá chegava dizia que ia fazer uma grande reforma, mas na prática só inventava (e mal) uma coisa ou outra e trocava uns nomes, mexia aqui e ali em algumas matérias curriculares (que são mais ou menos as mesmas do meu tempo de estudante, note-se!). Infelizmente este Sottomayor Cardia, que inventou o propedêutico (provisório que se tornou definitivo, como é costume!), é que dificultou o acesso à faculdade. Depois dele, houve outro que encareceu brutalmente as propinas (terá sido a Ferreira Leite?), hoje em dia cada vez há mais alunos a desistir, por não as poderem pagar. Ou seja, em termos de educação universitária voltámos à velha guarda: é só para uma certa elite endinheirada! :P
EliminarVi sim! Obrigada! :D
Boa noite e bons sonhos!
E eu que pensava que os matulões do 11º e do propedêutico só faziam RGA`s onde nós, os do preparatório, púnhamos braço no ar sem sabermos bem porquê. Sempre a aprender consigo... um abraço.
ResponderEliminarBem-vindo, MANUEL COSTA!
EliminarNeste ano não houve RGA's para ninguém, que não havia local para comícios... só para cartadas e, vá, assistir a uma aulita ou outra! :)
Abraço
(cópia do comentário já feito no blog do Carlos)
ResponderEliminarEssas "reuniões" para estudo, nos cafés de antigamente, era um hábito radicado, no meu tempo ! Julgo que já não o seja tanto hoje.
Devo-lhes dizer que muito raramente estudava em casa. Aproveitava os "furos" e todo o tempo livre para estudar das 9 à uma e das 2 às 6 assim, e não sozinho, em casa. Isto, porque fazia por tirar partido dessas situações de estudo em conjunto. Eu gostava de estudar alto, "ensinando" aos colegas, como que a explicar a "matéria" na aula, ao professor (os meus colegas agradeciam) e assim conseguia óptimos resultados! :)))
Relato muito interessante Teté ! Fez-me bem recordar, embora eu fosse anterior ao propedêutico e ao 12º, mas havia exame de aptidão (depois do antigo 7º), ao qual, por acaso, dispensei ! rsrs
Beijoca ! :))
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Já o meu pai estudava sempre em cafés, RUI, no caso dele por não ter mais local onde estudar, pois vivia num quarto alugado nos seus tempos de estudante!
EliminarMas quando eu era estudante já havia muita gente que dizia não se concentrar a estudar nos cafés, para mim era um bocado ao contrário: em casa dava-me sono! E com a cama ali tão perto, por vezes o estudo acabava em sesta... :)))
O meu filho vai muitas vezes estudar para bibliotecas, até porque cafés onde ainda é permitido estudar quase não existem por estas bandas! Sinais dos tempos? Em casa a tentação dele é mais pela PlayStation... ;)
Beijocas!
Também comentei este teu texto lá no tal "sítio", de forma bem sintética e lamentando a minha preguiça para fazer o mesmo! :-))
ResponderEliminarAbraço
Não se pode dizer que o Carlos não tenha dado um prazo bastante alargado, ROSA! Pode ser que até lá te passe essa tal preguiça... :)
EliminarAbraço
essa coisa das "tabletes bichosas" só acontece porque não instalam um antivirus em condições!
ResponderEliminaros tabletes são bastante usados, hoje em dia, e já se sabe que os virus atacam onde podem encontrar mais vitimas
Eheheh, defeito de informático, VÍCIO: as tabletes eram outras! :D
Eliminarehehehehehehehheeh Desculpa Teté, mas esta gargalhada é para o comentário do Vício eheheheheh
ResponderEliminarApesar do estudo com os amigos, no café ou em casa de cada um, ter sempre muita risota e muitas pausas para beber, comer ou simplesmente vir à rua ou à janela, era muito proveitoso e delicioso :)))
Aqui perto de mim há um mini-mercado, tem lá um pão gigante dentro de um cesto, há mais de 1 ano, claro que aquilo não é para vender, é só para os clientes saberem que ali se vende pão alentejano, mas já ouvi comentários sobre o facto do pão estar ali ao ar e ao pó eheheh
Beijinho :)))
O Vício é um brincalhão, MARIA! :D
EliminarSabe sempre bem juntar o útil (ou necessário) ao agradável, né? :)
Epá, mas esse pão não fica com bolor?!? Mas lá que dá mau aspeto, lá isso... :)))
Beijocas!
Como não sei, se leste o comentário que te deixei no "crónicas on the rocks", pois só lá cheguei na segunda-feira à noite, fica também aqui:
ResponderEliminarFoi com grande prazer que me sentei contigo à mesa do café "Entulho", mas sem comer chocolates, coisa de que não gosto muito (felizmente, neste caso).
Adorei ler a tua história, Teté, que além de ser bem divertida está muito bem escrita (como sempre).
E da imagem também gostei muito. Tuas ou não, as imagens que publicas aqui também são sempre de primeira água.
Já que o "Entulho" não existe, encontramo-nos então à mesa do café "Piolho".
Beijinho com saber a café.
Li, sim, EMATEJOCA! :)
EliminarObrigada! Também gostei muito da imagem! :)
E sim, lá nos encontraremos à mesa do café "Piolho"!
Beijinhos, a aguardar a próxima cavaqueira! :D
Já li e já comentei, para o caso de não leres, reformulo aqui a minha questão, foi neste mesmo café onde aconteceu aquela situação com o funcionário que certa vez estava a limpar os vidros com outra coisa qualquer para grande gáudio e diversão da Teté e do resto da companhia? Eu não sei se estou a fazer confusão mas a descrição desse espaço não me é estranha...
ResponderEliminarBeijinhos*
Foi sim, POPPY! Boa memória, também! :)))
EliminarQuase todas as recordações que tenho de cafés estão ligadas ao "Entulho", já que fui cliente assídua ao longo de mais de 15 anos, até fechar portas de vez! E apesar das suas "especificidades" ainda tenho saudades daquele espaço de convívio... :D
Beijocas
Uma cavaqueira muitíssimo agradável,Teté. Embora os chocolates tivessem bicho, o café estava delicioso :-)))
ResponderEliminarUma vez mais muito obrigado por ter animado a tarde do último domingo de Janeiro. Para a semana há mais e parece-me que vão continuar as nossas amenas cavaqueiras até à Primavera, quando as tardes de domingo começarem a pedir ar livre...
Beijinho
Eu é que agradeço, CARLOS, gostei imenso de me sentar à mesa do seu café de domingo! :)))
EliminarE claro que vou continuar a frequentá-lo! Assim apareçam textos até à primavera... :D
Beijinhos
Gostei da tua estória e considerei-te sortuda porque não tiveste que te deslocar para longe para estudares! : ) Mas também fui sortuda, confesso, por ter a oportunidade de viver numa cidade linda que apenas conhecia “de passagem”, encontrar outras pessoas interessantes de várias partes do país, conviver com a família que nos acolheu por quem sempre senti uma grande amizade e por ter ido ao São Carlos uma vez!
ResponderEliminarAbraço
É verdade, CATARINA, nesse aspeto fui uma sortuda! O meu pai é que foi o pioneiro de vir estudar para a cidade e depois... ficou por cá! Mas tive muitos colegas de várias partes do país, que me lembre todos se ambientaram bem (apesar do azar inicial de uma delas, com o quarto onde se instalou)!
EliminarAgora que falas nisso: acho que nunca fui ao São Carlos! :)
Abraço
Tinha lido no crónicas on the rocks :))
ResponderEliminarEssa coisa do propedêutico ainda conseguiu ser mais parva que o 12º ano.
E não é fácil!!
Beijocas
Não admira que fosse mais parva, PEDRO COIMBRA: além do propedêutico ser o percursor do 12º ano, andava toda a gente a zeros sobre quais seriam as matérias a leccionar, de como iria funcionar via TV, de quando é que os fascículos de estudo estariam disponíveis (quase nas vésperas dos exames não iam muito a tempo?!?), quando seriam os exames, onde e qual o seu peso! Um autêntico regabofe! E por toda a gente entenda-se alunos, professores e ministério! :)
EliminarBeijocas