O senhor Vaz era um homem baixo e magro de bigode farfalhudo e grisalho, certamente já entradote na faixa dos "enta", que era dono da mercearia de bairro onde quase toda a vizinhança da rua se abastecia. A mulher, que o auxiliava no atendimento ao balcão, parecia ter o dobro do seu tamanho - mais alta e forte, para não dizer cheiinha de abundantes carnes - e dominava o espaço, já de si acanhado. A loja tinha um cheiro indefinível, numa mistura de desagradáveis odores a bacalhau seco e queijos de várias origens, "açucarados" pelo da fruta variada.
Era homem que tinha vindo das beiras em novo e por cá fizera vida, tendo um jeito especial para vendedor, adulando a clientela enquanto pesava a farinha, o açúcar ou o feijão depostos nuns cartuchos cinzentos de papelão, que equilibrava na balança à medida do pedido da freguesa, sem esquecer de chamar a atenção para outras especialidades à venda ou de oferecer uns rebuçadinhos aos putos, quando a compra era avultada. Para as entregas ao domicílio (que já as havia, especialmente porque a maioria dos prédios daquela rua não tinha elevadores) tinha um muito jovem marçano oriundo lá da terra, que passava a vida a alancar com grandes cestos de vime ao lombo. Em tempos áureos até chegou a ter dois, um porque dentro em breve seria chamado para a tropa (e guerra do ultramar) e o rapazola que o iria substituir. Viviam em casa do senhor Vaz e da mulher, algures para Sete-Rios, constava até que no dia do tremor de terra de 1969 tinham saído todos desalvorados para a rua, em pelota! O que motivou inúmeras galhofadas durante uns tempos...
Outra circunstância que se conhecia, era o ódio visceral e mútuo que o senhor Vaz nutria pelo senhor Emílio, o proprietário da mercearia mais próxima, espaçosa e próspera da zona, que não se coibia nada de fazer graçolas em relação ao concorrente das 'berças'. Ambos autênticos produtos da época e de uma Lisboa de outros eras, em que prevalecia o espírito da aldeia, tão magistralmente caricaturado por Camacho Costa, nos "Malucos do Riso".
A rivalidade entre um e outro não valeu de muito, porque o primeiro supermercado da zona instalou-se bem no meio dos dois, com preços mais baixos e maior variedade de produtos, e ambos começaram a perder a clientela habitual. Curioso é que tanta coisa mudou - e para melhor - mas a mentalidade dos merceeiros... nem por isso!
Imagem da net.
Só pelo título, já sei que vou adorar ler-te.
ResponderEliminarVolto daqui a pouco.:)
bji
Nina
… a memória é já longínqua mas trouxeste-me à ideia a loja de aldeia da minha avó :)
ResponderEliminar… hoje também já não é loja está cheia de coisas minhas e dos meus pais. :(
Beijinhos,
FATifer
quanto é que pesava o peso de quilo que equilibrava a balança?
ResponderEliminar"Mentalidade dos merceeiros"
ResponderEliminarcaracteriza muitíssimo bem os gerentes do Pingo Doce!!!
Adorei o texto Recordei a mercearia do Ti'Luis Estaca na Telha. Não tinha com quem implicar já que era único, também não tinha ninguém para entregas, mas ele era assim, mas a marcearia era assim parecida.
ResponderEliminarUm abraço
Ah! mas não sabes a melhor, Teté. Aqui na minha zona, na Lapa, fechou um supermercado (que até nem era muito super, era mais um mini mercado), e há coisa de um mês, em pouco mais de uma semana, abriram 4 mercearias 4, embora pareçam mais mercados de fruta e legumes! Uma que acho que é de portugueses (pelo menos as empregadas são) duas de paquistaneses e uma de chineses. E esta, hein? :)
ResponderEliminarQuando eu vim morar práqui havia duas mercearias assim, uma em frente à outra...não sei se os merceeiros se odiavam, mas sei que não se falavam apesar de saberem tudo da vida um do outro, o que não era difícil já que viviam no bairro há muitos anos e por cima das mercearias...também tinham as mulheres a ajudar e aos sábados, dias de maior movimento, até os filhos ajudavam...
ResponderEliminarCurioso é que cliente que fosse a uma não ia à outra ehehe
Uma fechou há 2/3 anos (a minha) e a outra mudou de instalações, que apesar de mais modernas continua com o mesmo aspeto de mercearia...é muito raro lá ir porque eu era cliente da que fechou ehehe, mas agora fiquei com vontade...e até fiquei com vontade de voltar ao (meu) mercado de Benfica...tenho que lá voltar pra comprar "cenoras", "irvilhas" e "peçegos" eheheheh
Uma vez merceeiro merceeiro para sempre ehehe
Beijinho :)
Ainda me lembro de uma mercearia que havia ao pé da minha casa e os donos realmente cheiravam a bacalhau seco:)
ResponderEliminarMinha amiga, "quem nasce lagartixa nunca chaga a jacaré", rrss
ResponderEliminarFica bem
Por momentos, senti-me transportar para mercearia do sr. Viegas- mais sovina que o senhor Vaz- onde a minha mãe se abastecia.
ResponderEliminarO sr Viegas tinha um ódio particular ao sr Cunha, empregado que lhe "roubou" a filha e montou negócio a umas centenas de metros, roubando-lhe igualmente a clientela atraída pelo ar modernaço e pelos preços mais baixos que praticava.
Uma guerra semelhante à do sr. Alexandre e do sr. Belmiro, não sei se conhece...
duas portas abaixo da minha, a Lurdes viúva. a mesma mentalidade mas em coscuvilheira :)
ResponderEliminarduas portas abaixo da minha, a Lurdes viúva. a mesma mentalidade mas em coscuvilheira :)
ResponderEliminarSó pelo título, NINA?! :))
ResponderEliminarObrigada e beijocas! :)
Estas mercearias proliferaram em tempos, FATIFER, não só em Lisboa... :)
ResponderEliminarBeijocas!
O quilo pesava um quilo, VÍCIO, mas se a freguesa só queria meio ou 250 gramas, era isso que o senhor Vaz aviava. Ainda não tinham "inventado" os pacotes peso-certo de fábrica. Contudo, não deixava de constar que as balanças das mercearias nem sempre estavam bem equilibradas... :))
ResponderEliminarSe fossem só os do Pingo Doce, EMATEJOCA... Mas enfim, esse (sem plural) nem tem tenta disfarçar! :P
ResponderEliminarELVIRA, todos temos uma mercearia nos "recuerdos", em Lisboa ou noutro canto do país... :D
ResponderEliminarAbraço!
VIC, também ainda tenho mercearias na zona, onde por acaso prefiro comprar frutas e legumes - uma antiga (já um pouco modernizada) e outra que abriu há uns dois anos ou coisa, para a qual a proprietária não tem o mínimo jeito... :))
ResponderEliminarPor enquanto são todas de portugueses, embora haja um já antigo pequeno supermercado de chineses, digamos que muito "portugalizado" e com uma boa clientela... :D
Ah, tens um mercado em Benfica, MARIA? E eu que não sabia... Fazes desconto ao pessoal? =))
ResponderEliminarOK, entendi-te! Mas a rivalidade entre o senhor Vaz e o senhor Emílio não tem fronteiras, para lá das deste país... e parece ter pilhas daquelas... que duram e duram, através dos tempos! :D
Quanto ao merceeiro forever, concordo! :)
Beijocas!
Ali era mais a mercearia a ter esses estranhos odores, RAINHA, os donos raramente vi fora da loja... :))
ResponderEliminarNa "mouche", SÃO! :)
ResponderEliminarBeijoca!
Estas histórias repetem-se e repetem-se cá no burgo, CARLOS BARBOSA DE OLIVEIRA, independentemente dos nomes e dos tempos... :)
ResponderEliminarA mesma mentalidade, em coscuvilheira, só pode ser um "must", MOYLITO! =))
ResponderEliminarSó pelo título, Teté!:))
ResponderEliminarE agora que li o teu fantástico texto, surgiu uma saudade tão grande dos tempos de menina!
Também nós tivemos uma mercearia, pertença do Sr. Abílio que a passou aos meus pais, acabando por ser administrada pelos meus avós, já que os primeiros regressaram a França após a viagem de regresso, que quase vitimou a minha mãe e lhes desfez o carro novo.
Vê tu as lembranças que me trouxeste!
Quando a mercearia em frente abriu, também as rivalidades se faziam sentir e ainda hoje acontece. Em dias de festa é um Deus nos acuda!:)
Já a questão dos moços, lembro-me bem dela na altura do Sr. Abílio. Esse, sim, era um merceeiro à semelhança do Sr. Vaz. Os meus avós tinham qualidades a mais para terem moços.:))
beijinhos e obrigada por este belíssimo texto:)
Nina
Há cenas que nos ficam na memória para sempre, NINA! Algumas trágicas, outras cómicas, outras porque se repetiram anos a fio, quando julgávamos que aquela era a "normalidade" que não ia mudar nunca... :)
ResponderEliminarA rivalidade entre "merceeiros" continua a existir, ainda hoje, mas agora a outro nível, que os pequenos lá continuam sossegadinhos no seu canto... ;)
Obrigada e beijocas!