segunda-feira, 22 de abril de 2013

CINCO QUARTOS DE LARANJA

"Quando a minha mãe morreu, deixou a quinta ao meu irmão Cassis, a fortuna da adega à minha irmã Reine-Claude, e a mim, a filha mais nova, deixou-me o álbum e um jarro de dois litros contendo uma trufa negra. [...] Uma distribuição de riqueza um pouco desigual, mas a mãe foi sempre uma força da Natureza, concedendo os seus favores como lhe apetecia, não deixando transparecer os trâmites da sua lógica peculiar."

É assim que Joanne Harris inicia este romance, que à partida pode causar alguma estranheza, por tão evidente falta de equidade. Mas à medida que vamos avançando nas suas 320 páginas, a narradora Framboise Dartingen - uma sexagenária a viver na aldeia de Les Valeuses, próximo de Angers e junto ao rio Loire - vai relatando o seu dia a dia no pequeno restaurante que abriu, valendo-se das receitas culinárias que a mãe escreveu no dito álbum e que fazem grande sucesso. Tanto, que um crítico gastronómico de Paris as elogia acaloradamente numa publicação nacional, o que traz alguns problemas a Framboise. Por um lado, o seu sobrinho e a mulher que também dirigem um restaurante noutra localidade querem que ela lhes forneça as receitas, para igualmente as utilizarem nas suas ementas. Por outro, porque esconde um segredo: nasceu e cresceu naquele local durante a II Guerra Mundial e a ocupação nazi, mas quase no final da guerra a família teve de abandonar a aldeia. Porquê? É isso mesmo que vai explicando enquanto recorda a sua infância, as suas brincadeiras e estratagemas para conseguir alcançar os seus objetivos infantis, nem sempre isentos de crueldade...

Tal como é habitual na escritora, as sensações sensoriais estão sempre presentes no aroma das laranjas ou das frutas a apodrecerem nos pomares, na música (proibida nas rádios) esporadicamente ouvida num bar das redondezas que não tinham autorização de visitar, nos chocolates que conseguiam saborear numa época de escassez, nos "tesouros" enterrados e escondidos no leito do rio que conseguem reaver através do tato,  nas pedras, campos e arvoredos que vislumbram diariamente e reconhecem ao ínfimo pormenor. Ou nas cenas de pesca a que a pequena Framboise se dedica com afinco, na busca incessante de pescar o Velho lúcio, que a tradição popular acreditava acarretar uma maldição.

Tudo temperado com a violência da guerra num país ocupado, a aparente frieza de uma mãe que não consegue demonstrar aos filhos o seu amor, oportunismos variados no passado e no presente e um romance improvável. Muito, muito bom. Adorei!

Citações:
"[...] comida é simplesmente comida, um prazer para os sentidos, uma cuidadosa construção efémera, como o fogo-de-artifício, que às vezes dá trabalho, mas que não deve levar-se muito a sério." 

"- Judeus - disse. - Sabem como fazer dinheiro. Cobra uma fortuna por um pedaço de seda que a ela não lhe custou um tostão. - Disse aquilo sem qualquer inveja, num tom quase admirativo. Quando lhe perguntei o que é que os judeus faziam, encolheu os ombros e percebi que não sabia bem." 

"Não arranjo desculpas. Quis magoá-la. O velho cliché é verdadeiro: as crianças são cruéis. Quando enfiam a faca, vão bem mais fundo do que qualquer adulto, e nós éramos coisinhas ferozes, impiedosos se detectávamos sinais de fraqueza." 

26 comentários:

  1. Mais um para a listaaaaaaaa, rrss

    Bom serão

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tenho quase a certeza que vais gostar, SÃO. Embora obviamente seja ficção também vai dando um um quadro da ocupação nazi numa pequena aldeia e de como isso afetou os aldeões... :)

      Bom serão para ti também!

      Eliminar
  2. É a autora de Chocolate, não é? Desse gostei bastante.

    Boas leituras!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É, GRAÇA, mas esse não li! Já tinha visto o filme e não gosto de ler livros depois de conhecer a história... :)

      Boas leituras para ti também!

      Eliminar
  3. Anónimo4/22/2013

    Este de certeza que não vou ler, mas gostei daquele filme a partir do seu livro Chocolate.
    Beijinhos e boa semana

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também gostei do filme, CARLOS! :)

      Beijocas e boa semana!

      Eliminar
  4. Tenho quase todos os livros de Joanne Harris, Teté. O primeiro que li foi o bestseller "Chocolate"! Quando vi o filme tive uma decepção tremenda.
    Este, "Cinco Quartos de Laranja", também o tenho mas curiosamente, foi de todos o que menos gostei. Esta edição deve ser mais recente do que o meu, pois a ilustração da capa é diferente. Logo que possas, lê " Vinho Mágico", é espectacular!:)

    Beijinhos!:))

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois, JANITA, "Chocolate" não li, uma vez que já tinha visto o filme. Mas li "Sapatos de Rebuçado", um de contos "Danças e Contradanças" e também gostei de ambos. Mas detestei "O Rapaz de Olhos Azuis". Ou seja, de todos este foi o que mais gostei! Lá está, os gostos diferem. (e o nosso estado de espírito na altura pode não ser o mais adequado àquela leitura, no momento...) :)

      Mas obrigada pela dica de "Vinho Mágico" uma compra a pensar para a próxima Feira do Livro... :D

      Ah, e esta é uma sobrecapa, a de baixo tem um tom parcialmente semelhante à palavra quiproquó ali no topo.

      Beijocas!

      Eliminar
    2. Tens razão Teté, nem faço menção ao nome da escritora que, neste caso, são um casal de escritores! Elaborei o post um pouco à pressa e como já lhe tinha feito referência noutro post, pensei que se lembrassem. Por sinal, foi numa resposta à Catarina que até já confundi com a Ematejoca, quando há horas atrás estive no blog dela!:))
      Não te dei a resposta lá no meu canto porque nem sempre tenho tempo para responder a todos/as, e ainda não sei com será desta vez. Como manda a boa educação - salvo raras excepções - ou respondemos a todos ou a ninguém.:) Então trago-te aqui a resposta que dei à Catarina e já vais ver quem são os autores deste "À flor da pele" . Desculpa, mas assim evito repetir tudo.


      Catarina 04 Abril, 2013 23:59

      Queria bisbilhotar os livros que tens na estante mas não se consegue ler os títulos com a exceção de “A Casa Secreta”! Gosto de olhar para os livros... e de os ler tb.
      Li muitos da Pearl Buck mas deste não me recordo.
      Abraço



      Janita 05 Abril, 2013 02:03

      Catarina, experimenta ampliar a foto, pode ser que consigas bisbilhotar melhor. Eheheh

      Mas, olha, se reparares bem, vês logo à direita "O Jogo de Memória", curiosamente dos mesmos autores de "A Casa Secreta". Falo no plural porque Nicci Gerard e Sean French, frequentaram ambos o Curso de Literatura Inglesa, casaram e juntos assumiram o pseudónimo literário de "Nicci French". Segundo eles, a escrita a dois é aquilo que permite a elaboração de um enredo infalível.:) Escrevem thrillers fantásticos; tenho vários livros deles e certamente já leste ou viste o filme "Killing Me Softly" baseado no livro, com o mesmo nome.

      Abraço.

      Eheheh Poderia resumir isto e dizer-te apenas o nome, mas assim ficas a saber a origem do pseudónimo Nicci French...:)

      Quanto ao "Sapatos de Rebuçado" e ao "Rapaz de Olhos Azuis" ainda dormem na minha mesa de cabeceira à espera de serem lidos. Agora, ando mais virada para o Daniel Silva, e o "A Marcha" também lá está, para "marchar" quando tiver tempo. Isto dos blogues é uma interação que me dá muito prazer, mas me tira muito do tempo que tenho disponível para o lazer. É como tu dizes : C'est la vie!:)

      Desculpa lá este testamento, em que ainda por cima não herdas nada que já não tenhas. eheh

      Beijos!

      Eliminar
    3. Nada que pedir desculpa, eu é que agradeço teres dado uma resposta tão completa e satisfeito a minha curiosidade, JANITA! Mas não conhecia os autores, nem o pseudónimo, nem o filme que mencionas. Autores a espreitar, sem dúvida. De Daniel Silva li um livro "As Regras de Moscovo", mas não fiquei fã: achei o livro faccioso e o "herói" um assassino perigoso, ainda por cima a coberto da espionagem.

      Claro que a blogosfera tira um bocado de tempo para leituras e outras coisas que gostamos de fazer, mas aí há que optar. É uma das razões porque vejo pouca televisão... e raramente às horas dos poucos e eventuais programas que vejo - a posteriori e em horas mortas, normalmente! Vale que não durmo muito...

      Beijocas e mais uma vez obrigada! :)))

      Eliminar
  5. Mais um para a minha lista, parece-me interessante :)

    De Joanne Harris li "Chocolate" e amei, vi o filme e não gostei...

    Viste Teté? Como se já não me bastasses tu que vais engrossando a minha lista de futuros livros a comprar, agora ainda vem a Janita tentar-me com "Vinho Mágico"...ai a minha vida, assim não há euros que cheguem (assobiando)

    Beijinho :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não li esse dela, MARIA, talvez por isso tenha gostado do filme! :)

      Bom, só te sei dizer que este ano tenho tido sorte com os livros que tenho lido, não sei é como vou chegar ao fim do ano e escolher os meus preferidos nas leituras anuais, porque já são vários e cada um do seu género! :D

      Pois é, a Janita também engrossou a minha lista de livros a comprar... Mas a bem dizer gosto de palpites sobre outras leituras. Mesmo que os gostos sejam diferentes, mas isso só percebemos com o tempo!

      Beijocas!

      Eliminar
  6. Acabas de me dar uma excelente ideia para presentear uma amiga! Também vou ter em consideração o " Vinho Mágico"...só conheço o chocolate e gostei imenso...xx

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também anotei a dica de "Vinho Mágico", já que tirando uma exceção gosto da escrita de Joanne Harris, PAPOILA! :)

      "Chocolate" não li, por ter visto o filme!

      xxx

      Eliminar
  7. Minha querida amiga!
    Pela tua interrogação fiquei a pensar que julgas ter-me referido a ti.
    O fanatismo a que me refiro não tem nada a ver contigo, que até és bastante imparcial. Também eu estou farto de ver coisas que não queria. O que eu sinto é que nesta altura do campeonato, aparecem sempre aqueles que viram aquilo que não queriam, mas quando é ao contrário já assim não é. São sempre senhores da razão, à sua maneira. E isso tanto acontece com adeptos dos outros clubes como do nosso. São esses os facciosos e fanáticos. Basta ver os programas dos comentadores desportivos.
    Evito até falar de futebol e política com quem quer que seja. Uma amizade vale muito mais que isso e nem todos podemos gostar do mesmo.

    E ... se a esta hora não fizesse mal, apeteciam-me cinco quartos de laranja.
    Beijinho Teté

    nosso clu+be como nos outrsotudo sabem dúbias questãoes

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Como sabes, KIM, não costumo ver jogos de futebol. Nem ao vivo, nem na TV, embora neste caso tenha visto ocasionalmente o segundo golo, já depois de ter publicado o post. E sim, fanatismos clubísticos não são de todo comigo. Com tanta coisa importante porque é que a malta vibra mais com um jogo do que com casos da vida real que são tão mais gritantes?

      Confesso que em termos de política já me irrita mais quando alguns não querem ou fingem não ver o que está na cara. Isto porque as repercussões das escolhas alheias acabam por também nos tocar à porta! E essas com consequências bem mais graves do que perder ou ganhar um jogo.

      Mesmo assim, também não costumo alargar-me muito em temáticas políticas, porque é óbvio que cada um tem as suas ideias (mais ou menos informadas) e discussões dessas não costumam levar a nada. Eventualmente a zangas, que também não valem a pena. É como dizes, a amizade vale mais que isso! :D

      Uma grande beijoca para ti!

      Eliminar
  8. De Joanne Harris só conheço “Chocolat”. Sei que vi o filme (que gostei imenso) mas não me recordo, neste momento, se li o livro.

    Depois de ter acabado A Sombra do Vento que considerei excelente, e mais dois de Marina Nemat (A Prisioneira de Teerão) – foi um período de leitura como nos “velhos” tempos (de há mais de um ano!) – vou começar esta noite “O senhor Ibrahim e as Flores do Corão & Óscar e a senhora cor de rosa” de Eric-Emmanuel Schmitt.

    Naquele dia que faltou eletricidade aqui em casa, não passei o tempo apenas a fotografar guarda-jóias!!! Pus a leitura em dia!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bem me parecia que ias gostar d' "A Sombra e o Vento", CATARINA! :)

      E suponho que deste também irias gostar, que ao fim de um tempo começamos aperceber quem tem gostos mais ou menos semelhantes aos nossos... :D

      Essa "Prisioneira de Teerão" acho que já vi por aí em livrarias, mas ainda não calhou. Gostaste? Esse último autor não conheço nem de nome, muito menos do livro.

      Francamente, sem eletricidade não faço nada! Não tenho nenhum candeeiro a pilhas ou de petróleo, só umas lanternas e velas, que não dão luz suficiente para leituras. Nem para tirar fotos... :)))

      Eliminar
  9. Mais uma sugestão para guardar.
    Beijocas!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não sei se é livro para si, PEDRO COIMBRA, que a autora é muito centrada num universo feminino, que nem sempre agrada aos homens... :)

      Beijocas!

      Eliminar
  10. Já me tinham falado desse livro, um livro que toca no sentido dos aromas através de palavras...

    No fundo a mais nova ficou com o maior tesouro :) As mães são assim, nem sempre o que fazem parece o mais correcto mas a longo prazo aprendemos a dar valor.

    Beijocas

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ora mesmo sem teres lido o livro, POPPY, chegaste a uma conclusão muito próxima da do final da sua leitura... :)

      Beijocas!

      Eliminar
  11. Já o li há uns anos e gostei muito!

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Então já somos duas, ROSA, anos à parte! :)

      Abraço

      Eliminar
  12. Não conhecia o livro. Mas conheço um blogue de culinária com esse nome. Muito bom. http://www.cincoquartosdelaranja.com/

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bom, o nome do blogue deve ter sido inspirado no livro, que já é de 2001, LUISA! Mas é mais um de culinária para espreitar de vez em quando... Gracias! :)

      Eliminar

Sorri! Estás a ser filmad@ e lid@ atentamente... :)