Há muito tempo que desejava ler este romance de Jorge Amado, tido como o de maior sucesso no mundo inteiro, quando o encontrei em edição de bolso por um preço convidativo (e com mais uns descontos) não hesitei: é já!
Os protagonistas são rapazes órfãos, abandonados, pobres, revoltados, sem instrução ou afeto, conhecidos como Capitães da Areia, porque atuam em grupo na luta pela sobrevivência diária nas ruas e praias de São Salvador da Bahia, nos anos 30 do século passado. Temidos pelos furtos, assaltos e esquemas que praticam, são perseguidos pela polícia e enviados pelo juiz de menores para o reformatório - quando capturados.
Mas logo nas primeiras destas 280 páginas verificamos o estilo tendencioso da imprensa da época - via "Jornal da Tarde" - sempre pronta a destacar e a elogiar os membros mais proeminentes da sociedade, enquanto os rapazes são apelidados de sinistros, criminosos, malvados e outros "atributos" de semelhante teor. As cartas de apoio ao artigo são evidenciadas nas páginas do jornal, as de repúdio relegadas para cantos obscuros e sem grande visibilidade.
Aí, o que Jorge Amado nos propõe é uma espécie de lupa, para chegarmos perto da realidade daqueles meninos tão prematuramente transformados em homens, que pernoitam num "velho trapiche* abandonado", enquanto vamos descobrindo as suas identidades e a vivência quase sempre traumática de cada um, apesar dos poucos anos de vida - aos 15 anos, orfão e a viver na rua desde os 5, Pedro Bala é o líder do bando constituído por cerca de cem miúdos de todas as raças e credos. À medida que vamos folheando, o escritor apresenta-nos também João Grande, o mais alto e forte, mas também grande defensor dos mais pequenos, Sem-Pernas, que ganhou a alcunha por coxear de uma perna, o que compensa com uma língua cáustica e um ódio quase constante por todos, Professor, colecionador de livros e talentoso desenhador, além de hábil estratega, Gato, por ser ágil e vaidoso, Pirulito, que reza pelo perdão dos seus pecados e ambiciona ser padre, Boa-Vida, cujo sonho é viver a tocar violão, Volta Seca, ansioso pelo regresso ao sertão e de se juntar ao seu padrinho Lampião de arma na mão, entre tanta outra rapaziada. O que os une a todos é a lealdade pelo grupo, que, independentemente de todas as desgraças vividas, os acolheu.
Detestados pela população mais rica da cidade, os Capitães da Areia têm alguns amigos entre a mais pobre, nomeadamente o padre José Pedro ou a mãe-de-santo Don'Aninha, que fazem o melhor que podem para os ajudar. Contudo, quando um surto de varíola chega à cidade, o terror da população aumenta e, pela lei, todos os infetados com o vírus têm de ser internados no lazareto (hospital para leprosos), onde poucos sobrevivem. É na sequência desse surto que Dora aparece no grupo, aos 13 anos e com um irmão pequeno pela mão, também eles órfãos e vítimas da mortandade que a doença causou. E nela os meninos revêm o carinho da mãe ou da irmã que nunca tiveram...
Em suma, um pequeno grande livro, que me comoveu como poucos!
Citações:
"Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino dos céus seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado."
"Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com palavras presas, um nó na garganta. Mas também achava bonito Boa-Vida andar assim para a morte para não contagiar os outros. Os homens assim são os que têm uma estrela no lugar do coração."
"O ódio não cresce mais em seu coração. Já atingiu o máximo."
* trapiche - armazém de mercadorias junto ao cais, segundo o Priberam.
Comovida pelo relato e porque já não me lembrava de muita coisa (li-o na altura da faculdade, quando era obrigada a ler mais quinhentos mil), é livro para querer voltar a ter à minha cabeceira.
ResponderEliminarObrigada, Teté.:)
bji
O livro recordou-me um pouco "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, que também li no 6º ano do liceu, e que se calhar vou reler, NINA. Não é que não me lembre do livro, mas tantos anos volvidos alguns pormenores já me escaparam, e lembro-me de ter tido uma comoção idêntica. Nem de propósito, a Rosa fez um post sobre o livro... :)
EliminarBeijocas!
Este foi um livro que esteve à minha cabeceira até há relativamente pouco tempo como decoração, em cima de mais dois. Decoração depois de ter sido lido, evidentemente! Recebi-o, enviado de Portugal e como prémio de um blogue, em 2010, com dedicatória! Tb gostei imenso de o ler.
ResponderEliminarContinuação de boas leituras.
Abraço : )
Pelos vistos também só o leste recentemente, CATARINA! Toda a gente me falava neste livro e eu que não, que nunca o tinha lido, mas a curiosidade já não faltava. Valeu a pena, porque adorei! :)
EliminarBoas leituras para ti também!
Abraço
Este é dos livros mais marcantes da minha adolescência, Teté. Foi com este livro que descobri Jorge Amado. Muito, muito bom!
ResponderEliminarSei que adoraste, TONS DE AZUL, lembro-me de estar na tua lista dos 50 melhores livros de sempre. Concordo inteiramente: muito bom! :)
EliminarLi-o faz tampo. Anos!!
ResponderEliminarLi muitos livros de Jorge Amado. Em vários "encontrei" semelhanças com realidades portuguesas.
Sobre estes capitães sei que gostei de ler/"ver".
É seguramente o livro que voltarei a ler.
Porque tenho destas coisas: ler mais do que uma vez e de cada vez encontrar novos momentos interessantes.
Em cada vez é (quase) como se fosse a primeira vez!
Beijokas areadas com sorrisos!
Como quase toda a gente, KOK! E sei que vou ler mais Jorge Amado em breve, pois o livro encantou-me... :)
EliminarNão sou muito de repetir leituras (com tantos livros que ainda não li, né?), mas fiquei a pensar que gostaria de reler "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, em breve, pois também o li com os meus 15/16 anos, possivelmente hoje terei outra leitura... quase como se fosse a primeira! :D
Beijocas e sorrisos, sem areia!
Foi o primeiro livro de Jorge Amado que li, andava no 6º ou7º ano do liceu. Foi-me oferecido por familiares brasileiros. Devorei-o e depois andou a correr de mão em mão, entre amigos. Uma maravilha!
ResponderEliminarBeijinhos
Pelos comentários, percebi que já muita gente leu o livro em jovem, CARLOS! Mas não calhou nessa altura, agora encantou-me... :)
EliminarBeijocas!
Olá Teté,
ResponderEliminarJá li este livro há uns tempos largos. Mas lembro-me bem dele. Magnífico.
Teté, Trapiche significa também, nalguns locais, casa de saúde mental. Não sei a relação, mas sei que significa isso.
Beijinho
É, JP, deve ser livro que não se esquece facilmente. Pelo menos, tenho a certeza que não o vou esquecer com facilidade... :)
EliminarTrapiche também pode significar engenho de cana de açúcar, mas no contexto suponho que é o significado mais adequado. Daí ter-me limitado a ele, porque logicamente tive de recorrer ao dicionário...
Beijocas
Foi dos livros de Jorge Amado aquele que mais me marcou, Teté! Já o li há bastantes anos e só lamento ter-me sido emprestado como tantos outros que li, durante a minha juventude. Depois, claro, tinha que os devolver. Quando comecei a trabalhar e ter o meu próprio dinheiro, era em livros que o gastava.:)
ResponderEliminarNão deixa de ser curioso como ele escreveu este livro ainda tão novo e sem grande experiência de vida. Em Salvador da Bahia, chegaram a ser queimados, na via pública, vários exemplares deste belo romance, considerado pelo governo brasileiro da época, como subversivo!
Parabéns, Teté, excelente escolha para assinalar este dia, embora o tema seja de uma realidade muito dura.
Beijinhos!:)
É, JANITA, na adolescência também li muitos livros emprestados, da Pearl Buck foram quase todos, daí não saber exatamente muitos dos títulos que li da escritora - a mãe de uma amiga tinha todos ou lá perto e ia-me emprestando à medida que acabava de o ler e o devolvia... :)
EliminarSim, na contracapa (como na wikipédia) refere que o livro publicado em 1937 foi queimado em praça pública e que a posterior edição em 1944 é que correu mundo. Os exemplos que vinham da Alemanha de Hitler, que marcaram tão negativamente uma época. Grandiosa foi a força de vontade de tantos escritores que, mesmo vendo as suas obras queimadas, não deixaram de escrever... e ainda bem! :D
Não sou de me armar aos cucos: acabei de ler e escrevi o post! O facto de calhar no dia do livro infantil foi mera coincidência. E não, também não me parece um livro infantil, retrata duras realidades de certas crianças de uma época e, infelizmente, não só!
Beijocas!
Já estive para ver o filme, mas seguramente que o livro é superior. Vai para a lista! Beijoca!
ResponderEliminarAqui para nós, que ninguém nos ouve, o filme está no Youtube, (completo, creio eu!) RAUF! Mas ainda não tive tempo de o ver... :)
EliminarBeijocas!
Parece que fui a única a não ler este livro :(
ResponderEliminarTenho dois livros de Jorge Amado, mas nunca os li, sei que um é Gabriela, cravo e canela, o outro não lembro...tenho que ver.
Seja como for, já anotei este...para procurar ou comprar, mas a esse preço pucanino :p
Beijinho :)
Ora, também acabei de o ler agora, ainda estás muito a tempo, MARIA! :)))
EliminarA Gabriela folheei na altura que a primeira telenovela passou na TV, agora está em stand by na estante, para ler em breve... Mas nem um nem outro eram ou são meus!
Encontrei na FNAC recentemente, ainda não deve ter esgotado! :)
Beijocas!
Este também li, há cerca de 50 anos ! :)))
ResponderEliminarUm daqueles livros que marcam um adolescente, talvez quase como o Maio de 68 marcou uma geração !
Curioso é que, no Brasil, outros "Capitães da Areia" foram aparecendo no decorrer dos tempos !
Meninos pobres, desprezados pela sociedade, o que os tornava ainda mais perigosos que a sua natureza já deixava adivinhar ! Coitadas destas crianças !...
Quem não se lembra das perseguições a estas crianças pela polícia (incógnita) "encapotada à civil" e da chacina da Candelária em 93 ? ...
Beijoca, Teté ! :))
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Maio de 68 marcou outras gerações que não a minha, RUI, já que nessa altura ainda andava a saltar à corda... Aliás, só lhe dei a devida importância mais tarde, certamente depois de 1974! ;)
EliminarEnquanto lia o livro também pensava nessa chacina, e perguntava a mim própria se era possível que as coisas continuassem na mesma no Brasil tantos anos volvidos, sem que ninguém fizesse mesmo nada por estas crianças. Ou, no mínimo, que as autoridades fizessem muito pouco! E a conclusão a que cheguei não me agradou nem um bocadinho...
Beijocas!
Fiquei a pensar no meu pai...
ResponderEliminarEle ofereceu-me os "Capitães da Areia" era eu uma adolescente, guardei-o na mesa de cabeceira e demorei meses a pegar nele.mas depois adorei. A seguir as coisas mudaram e levada pela memória espevitada por este teu post vou escrever o que mudou...
xx
É isso mesmo, PAPOILA, por vezes estamos a ler qualquer coisa e dá-nos um clique, lembramos de outra mais ou menos relacionada na nossa cabeça... e sai novo post! :)
Eliminarxxx
Jorge Amado é um dos meus escritores favoritos.
ResponderEliminarE, na sua obra, este livro é fundamental.
Para ler de fôlego.
Beijinho
Foi o primeiro que li do escritor e também fiquei com vontade de ler outros, PEDRO COIMBRA! :)
EliminarBeijocas!