Vai uma pessoa carregada de livros para férias, para depois ler só unzinho. Por sinal, o único romance de Miguel Torga -"Vindima" - sendo ele mais pródigo em contos, poesia, teatro, ensaios e possuindo uma vasta coleção de diários. Do escritor já tinha lido em tempos três dos seus cinco livros de contos, que tenho para ler (e reler) numa coletânea completa. Big calhamaço, portanto!
Escrito em 1945, o próprio Torga escreveria em 1988 sobre este romance: "Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e misérias. E esse Doiro, felizmente, está em vias de mudar."
Seara, o feitor da Cavadinha, contrata quarenta homens, mulheres e crianças em Penaguião, para vindimarem as vinhas da propriedade do senhor Lopes. A roga (conjunto das pessoas contratadas para as vindimas) faz uma longa caminhada a pé pelas montanhas, enquanto a família do patrão temporário se desloca do Porto para a quinta de comboio. Uma família estranha, que uma empregada descreverá desta maneira mais adiante: "Com bom e sensato tino de lavradeira, considerava os Lopes, que já servia há anos, uma corja de ordinários. Ele, um burgesso sem alma; a D. Maria Jorge uma beata falsa; e Guiomar a presumida das presumidas. Salvava deste inventário severo a nobreza e a bondade de Alberto, por quem tinha desvelos particulares."
O Lopes de antanho lembra algumas personagens dos nossos dias: só vê cifrões à frente! Nascido entre o povoléu mas decidido a vencer, a sua ascensão social foi conquistada a pulso sem se saber bem como e um casamento por interesse fez o resto. Com jeito para negociatas em que fica sempre a ganhar, trata os seus trabalhadores como escravos e tem planos de alargar a sua influência na região, ambicionando casar ambos os filhos com os descendentes dos nobres Menezes, proprietários da Junceda, uma das quintas mais tradicionais da zona. Infelizmente, Alberto está longe de conquistar o coração da poetisa Catarina e Guiomar parece interessar-se mais por um médico de Lisboa, o dr. Bruno, que de momento se encontra de visita à brasonada família.
Por seu turno a roga trabalha de sol a sol, cortando os cachos de uvas das cepas, carregando-as em grandes cestos para o lagar, onde são pisadas pelos homens, em troca de ordenados de miséria, uma alimentação parca e uma cardenha com o chão coberto de palha - "dividida em dois por uma meia parede que teias de aranha prolongavam até ao telhado", para manter homens e mulheres separados - onde repousa o corpo cansado ao fim da jornada. Mas nem por isso os amores deixam de vencer entre os vindimadores, nem os problemas de surgir...
Apesar de algumas dificuldades com o vocabulário próprio das vindimas (possivelmente também regional), gostei imenso deste romance. E, tal como Torga, espero bem que estes cenários hoje já não existam!
Citações:
"A descrição colorida do palco de xisto escamoteava o martírio dos actores. O trato reles, as jornas miseráveis, a promiscuidade eram explicados de todas as maneiras: crises sucessivas nos mercados, pragas terríveis, concorrências desleais e criminosas do sul, anos de colheitas más. Simplesmente tudo isso não justificava uma escravidão de que não havia paralelo em todo o país."
"- Bem vê: em princípio, as serras são para os parolos. O bom que se pode tirar delas vai ter à cidade, até com melhor aspecto. Sem poeira, sem bichos, sem porcaria..."
"De aí a nada, arregaçados, os homens iam esmagando os cachos, num movimento onde havia qualquer coisa de coito, de quente e sensual violação. Doirados, negros, roxos, amarelos, azuis, os bagos eram acenos de olhos lascivos numa cama de amor. E como falos gigantes, as pernas dos pisadores rasgavam máscula e carinhosamente a virgindade túmida e feminina das uvas."
Apesar de ser uma admiradora de Miguel Torga, poeta e contista, nunca li este seu romance!
ResponderEliminarContinuação de boas férias!
Abraço
Também adoro Torga, ROSA! Embora leia muito pouca poesia, só aí esparsa em blogues ou assim... :)
EliminarFérias, agora... só para o mês que vem! Repartidas, como sempre... :D
Abraço
quando li o titulo pensei que já andasses a pensar no S. Martinho...
ResponderEliminarTorga... o tal escritor que não teve direito à presença do ministro da cultura nos festejos do seu centenário...
O S. Martinho ainda vem longe, VÍCIO! Embora adore castanhas, não estou assim tão desejosa que elas cheguem... que ainda há muito verão para gozar! :D
EliminarQuem precisa de ministros da cultura desta (falta) de calibre?
Também só lhe li contos...
ResponderEliminarLevo este romance de avanço, LUISA! :)
EliminarA homenagem ao Dustin fica para quando ele fizer 80 anos!!!
ResponderEliminarAmo toda a obra do transmontano Miguel Torga, que devorei quando era menina e moça, mais tarde li "Brazil" em alemão.
Continuação de óptimas férias algarvias e, eu colada a Düsseldorf e sem saber quando vou até ao meu querido Porto.
Já não estou de férias, EMATEJOCA! ;)
EliminarTambém gostei muito de tudo o que li de Miguel Torga, mas longe de lhe ter lido toda a vasta obra! Tenho outros autores que também quero ler e gosto de diversificar leituras... :)
Gosto de Dustin Hoffman como ator, mas há outros que admiro mais pelas suas tomadas de posição. Também há outros muito mais patetas, como o seu "irmão"... :)))
Espero que consigas tirar um tempinho para ir visitar o teu amado Porto! :D
Vinha, envergonhada, dizer que não conheço este livro, apesar de adorar Torga...mas já vi que não sou só eu.:)
ResponderEliminarE, se te disser, que está ali Saramago (Memorial do Convento), para retomar pela 500ªvez, desde que o comprei (antes de ser nobel) e ainda não o consigo ler?:(
Beijocas e boas leituras;)
Não se consegue ler tudo, NINA! E com tanta e variada oferta, por vezes passamos ao lado de grandes obras: eu, tu e toda a gente! :)
EliminarNo capítulo Saramago, estamos iguais - também já comecei esse várias vezes, mas nunca consegui "entrar na história". Estou a pensar um dia destes tentar outro (tenho vários)... para verificar se pelo menos entendo a escrita! Mas ler por obrigação, sem entender, é que não! :))
Beijocas e boas leituras para ti também!
Se só leu "unzinho", é sinal que desfrutou bem as férias e a diversidade de opções que elas permitem.
ResponderEliminarLi muitos contos do Miguel Torga, mas este romance não.
É verdade, CARLOS! Mas também sinal que houve uma semana de vento, em que a malta aguentava menos tempo na praia... :))
EliminarJá li esse livro e o “Novos Contos da Monhanha”. Gosto de Miguel Torga embora só tenha lido estes dois, que me recorde, com a exceção dos seus diários transcritos em alguns blogues.
ResponderEliminarE a propósito de livros. Já leste “A Mentira Sagrada” de Luís Miguel Rocha? Acabei de o requisitar em português na biblioteca pública.
Dos diários não li nada à exceção de excertos, CATARINA! Os "Novos Contos da Montanha" li como leitura obrigatória no liceu, "Contos da Montanha" porque me enganei a comprar o livro obrigatório e acabei por ler também, "Bichos" porque calhou. Mas também gosto muito da escrita dele! :)
EliminarEsse de que falas não li! Mas a coincidência de apelido e de Miguel será propositada? Ainda vou pesquisar... :)
Muito sinceramente acho que nunca li nada de Miguel Torga fora das leituras obrigatórias...
ResponderEliminarJá fui a Portimão à feira do livro, sim porque a World Press Photo não foi este ano para lá... Com isto tudo, ainda tive sorte que trouxe um livro de Primo Levi a 4€. :) Estava mal marcado e pronto lá tiveram de mo vender ao preço marcado. lol Aproveitei e ainda trouxe um outro de Afonso Cruz.
Por coincidência, o livro que o meu marido comprou na feira do livro de Portimão também era de Primo Levi, mas suponho que não tinha esse preço, TONS DE AZUL! :)))
EliminarComo te disse, não vi lá nada a anunciar a World Press Photo, mas como já tinha visto, podia ser só por não ligar muito.
Só li um livro obrigatório de Torga no liceu, os outros foram por prazer! Que são sempre as melhores leituras... :D
Eu, envergonhada, confesso que sou do Douro e não conheço do Miguel Torga se não alguns contos e um ou outro poema... Gostei dos excertos que escolheste citar. Emocionaram.me porque falam como a gente da minha terra. Vou ler. Prometido!
ResponderEliminarGostei de tudo o que li de Torga, sendo que poesia só leio em blogues e pouco mais, BRISEIS! Mas conhecendo a terminologia da região e das vindimas, a leitura até deve ser mais fácil... e emocionante! :)
Eliminar§ - detesto ler com o dicionário ao lado, só no final fui procurar as palavras desconhecidas, que significavam mais ou menos o que esperava, pelo sentido das frases... ;)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarVindima, é uma obra verdadeiramente apoixonante, que proporciona aos seus leitores um menú recheado de sabores e desabores, amor e ódio, em fim a obra trabalha com os sentimentos mais profundos dos seus narradores, e consequentemente mexe com as emoções de quem a aprecia. viva a escrita Torguiana
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