Sentia-se velho e cansado. O triplo espelho da cómoda do quarto devolvia-lhe uma imagem que já mal reconhecia, enquanto vestia o pijama para se deitar. Os gestos eram lentos, o passo miúdo. Só a pele mantinha a mesma tonalidade bronzeada, fruto de uma vida passada à beira-mar, o cabelo embranquecera, as costas curvaram, as rugas sulcavam a sua face. Fechou as portadas de madeira da janela, não sem antes relancear a vista pelo velho farol lá longe. Agora era tudo automático. A sua antiga profissão praticamente desaparecera, meia dúzia de homens, computadores e máquinas desempenhavam o trabalho, à distância.
Abriu a cama e estendeu-se, com um ranger que já não sabia se era dos seus ossos ou das velhas traves de madeira. Provavelmente, de ambos! Sentia frio e puxou os cobertores até ao queixo. Na mesa de cabeceira a fotografia da mulher sorria-lhe, timidamente, com aquele sorriso que permanecera no seus lábios até ao dia da sua morte. Tantos anos passados e ainda estranhava a sua falta... O relógio da sala badalou duas vezes.
Nessa noite a sensação de inquietação não o largava. O filho telefonara e as novidades não eram boas. Nada de saúde, felizmente, mas a nora acabara de perder o emprego. Agora como é que iam conseguir pagar o empréstimo bancário do apartamento onde viviam? Ou a escola privada da neta mais nova, que diziam ter um problema de aprendizagem? ("como é que lhe chamavam?" hiper-não-sei-o-quê, coisa parecida ao bicho-de-carpinteiro, que diziam também ter no corpo na sua infância!) O filho, optimista apesar de tudo, não o quisera apoquentar, derivara a conversa para o neto, que se estava a sair bem no liceu, "com melhores notas que as minhas", rira. Mas o nervoso era latente e preocupava-o. Como poderia ajudar? A sua pensão chegava para os seus pequenos gastos, mas pouco sobrava. Além de que ouvira por aí que o governo se preparava para cortar nos subsídios de desemprego, o que atingiria certamente ainda mais os rendimentos da família do filho. Tinha algum dinheiro de lado, para uma emergência, mas ponderou que a módica quantia não adiantava muito na resolução do problema. Fazia contas e mais contas de cabeça, mas a equação parecia-lhe impossível...
Três badaladas! Um misto de tristeza e zanga assolavam-no, impotente perante a realidade. Já não conseguia vislumbrar o sorriso de Rosa, que vivera com ele de cravo vermelho em punho aqueles dias distantes da revolução. Cerrou os olhos e, num gesto mecânico, a mão direita alcançou o botão do candeeiro e fechou a luz!
Abriu a cama e estendeu-se, com um ranger que já não sabia se era dos seus ossos ou das velhas traves de madeira. Provavelmente, de ambos! Sentia frio e puxou os cobertores até ao queixo. Na mesa de cabeceira a fotografia da mulher sorria-lhe, timidamente, com aquele sorriso que permanecera no seus lábios até ao dia da sua morte. Tantos anos passados e ainda estranhava a sua falta... O relógio da sala badalou duas vezes.
Nessa noite a sensação de inquietação não o largava. O filho telefonara e as novidades não eram boas. Nada de saúde, felizmente, mas a nora acabara de perder o emprego. Agora como é que iam conseguir pagar o empréstimo bancário do apartamento onde viviam? Ou a escola privada da neta mais nova, que diziam ter um problema de aprendizagem? ("como é que lhe chamavam?" hiper-não-sei-o-quê, coisa parecida ao bicho-de-carpinteiro, que diziam também ter no corpo na sua infância!) O filho, optimista apesar de tudo, não o quisera apoquentar, derivara a conversa para o neto, que se estava a sair bem no liceu, "com melhores notas que as minhas", rira. Mas o nervoso era latente e preocupava-o. Como poderia ajudar? A sua pensão chegava para os seus pequenos gastos, mas pouco sobrava. Além de que ouvira por aí que o governo se preparava para cortar nos subsídios de desemprego, o que atingiria certamente ainda mais os rendimentos da família do filho. Tinha algum dinheiro de lado, para uma emergência, mas ponderou que a módica quantia não adiantava muito na resolução do problema. Fazia contas e mais contas de cabeça, mas a equação parecia-lhe impossível...
Três badaladas! Um misto de tristeza e zanga assolavam-no, impotente perante a realidade. Já não conseguia vislumbrar o sorriso de Rosa, que vivera com ele de cravo vermelho em punho aqueles dias distantes da revolução. Cerrou os olhos e, num gesto mecânico, a mão direita alcançou o botão do candeeiro e fechou a luz!
Que angústia!!!! :(((
ResponderEliminarE pensar que isto é a realidade de cada vez mais pessoas :/
A realidade às vezes é angustiante, INÊS, embora a história seja fictícia! (ou seja, tem uns pós de várias vivências, concentradas numa única "personagem"...) :(
ResponderEliminarserá que ele não ensinou ao filho nenhuma das receitas caseiras para a hiper-não-sei-o-quê?
ResponderEliminartalvez lhe desse alguma tranquilidade...
Ná, essas receitas caseiras já não se usam, VÍCIO: dizem que traumatizam as criancinhas... :)
ResponderEliminarNão sendo nada “treta”, adorei a "historieta"… rima e é verdade. Também me pareceu que, como já referiste aqui nos comentários, juntastes várias situações num só personagem o que potenciou o impacto ;)
ResponderEliminarGostei particularmente do fim…
Beijinho,
FATifer
Tretas e historietas é o 'tag' que uso para histórias não verídicas, FATIFER! Mas quase todas elas tem um fundo qualquer de verdade, que conhecemos um pouco aqui e ali... :)
ResponderEliminarBeijinhos!
a velhice
ResponderEliminaro pensar na vida
a vida dos filhos, que já não deviam o incomodar com os seus problemas
o melhor é dormir, amanhã novo dia e na certa foi pesadelo, até as dores ou o ranger da cama
yayya
abrazo serrano
É uma daqueles situações que a ficção espelha a realidade... uma realidade muit cruel... Um abraço
ResponderEliminar(vamos nessa!! Antes das queijadas, bora lá fazer uma caminhada até ao palácio!!)
ResponderEliminar;))
A vida é mesmo assim, MIXTU, cheia de múltiplas preocupações. E os filhos desabafam com quem? Com o vizinho do lado? Ná... ;)
ResponderEliminarMas amanhã é sempre um outro dia: Carpe diem!
Abrazo citadino para ti!
Há realidades mesmo muito cruéis, PSIMENTO! E certamente existirão histórias reais inimagináveis... ;)
Abraço!
Caminhada, GATINHA?! Estava a pensar visitar de caminho, mas caminhadas não é muito a minha onda. Tenho faltado aos treinos... :))
Uma provável história e que é bem real em muitas casinhas portuguesas.
ResponderEliminarInfelizmente, PAULOFSKI, suponho que há casos bastante mais dramáticos...
ResponderEliminarsabes que barulho fez o interruptor? Imagina lá! Fez "pec"".
ResponderEliminarHá "clicks" assim, MOYLITO, que de vez em quando dão esses barulhos incomodativos... :p
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