"Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina." Assim começa o último livro de Chico Buarque - "Leite Derramado" - nas palavras de um homem centenário, que se encontra preso numa cama de hospital, após fracturar a perna direita.
Ao longo de 223 páginas, o velho delirante revela as suas memórias (ou o que resta delas) à filha octogenária, às enfermeiras que o tratam, aos restantes pacientes, por vezes desfiando-as apenas para o ar, sem grande coerência, lógica ou cronologia, contradizendo-se em diversas ocasiões. Simultaneamente, já que Eulálio Montenegro Assumpção tem imenso orgulho nos seus antepassados portugueses aristocratas, perpassam quase dois séculos da história do Brasil nos seus relatos tristes e amargurados, com o snobismo que nunca o abandonou, aqui e ali pontuados com um sentido de humor que caricatura personagens de outras eras. Para impaciência de alguns jovens companheiros de enfermaria, malcriados: "[...] nem bem eu abria a boca e já se manifestavam: não fode, vovô, conta outra! Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida."
Tendo perdido todos os bens e o estatuto social privilegiado que adquiriu à nascença, assistindo impotente à morte de antepassados e descendentes, resta-lhe apenas a filha e um trineto ou tetraneto narcotraficante - que ainda é quem sustenta as suas despesas hospitalares. O declínio familiar e pessoal torna-se notório nas sucessivas mudanças de casas, das mais chiques e imponentes até ir parar ao minúsculo apartamento actual, numa zona mal afamada, mas, apesar disso, o seu grande inconformismo continua a ser o abandono da única mulher que amou desesperada e obsessivamente - Matilde! "Olhando o meu corpo, tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele [pai], por todas a fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher."
Pode não ser aquela genial obra da literatura moderna brasileira como alguns querem fazer crer, só por ser de Chico Buarque "o-famoso-cantor-e-compositor-musical", mas, pessoalmente, adorei a sensibilidade e humor latente em cada entrelinha, numa imagem quase comovente de uma velhice prolongada e inadaptada aos tempos que mudaram... Alguns críticos referem que o livro tem semelhanças com outros de Machado de Assis, ou com a música "O Velho Francisco" do próprio autor, mas não encontrei assim tantas parecenças, daí a canção ser outra:
Ao longo de 223 páginas, o velho delirante revela as suas memórias (ou o que resta delas) à filha octogenária, às enfermeiras que o tratam, aos restantes pacientes, por vezes desfiando-as apenas para o ar, sem grande coerência, lógica ou cronologia, contradizendo-se em diversas ocasiões. Simultaneamente, já que Eulálio Montenegro Assumpção tem imenso orgulho nos seus antepassados portugueses aristocratas, perpassam quase dois séculos da história do Brasil nos seus relatos tristes e amargurados, com o snobismo que nunca o abandonou, aqui e ali pontuados com um sentido de humor que caricatura personagens de outras eras. Para impaciência de alguns jovens companheiros de enfermaria, malcriados: "[...] nem bem eu abria a boca e já se manifestavam: não fode, vovô, conta outra! Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida."
Tendo perdido todos os bens e o estatuto social privilegiado que adquiriu à nascença, assistindo impotente à morte de antepassados e descendentes, resta-lhe apenas a filha e um trineto ou tetraneto narcotraficante - que ainda é quem sustenta as suas despesas hospitalares. O declínio familiar e pessoal torna-se notório nas sucessivas mudanças de casas, das mais chiques e imponentes até ir parar ao minúsculo apartamento actual, numa zona mal afamada, mas, apesar disso, o seu grande inconformismo continua a ser o abandono da única mulher que amou desesperada e obsessivamente - Matilde! "Olhando o meu corpo, tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele [pai], por todas a fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher."
Pode não ser aquela genial obra da literatura moderna brasileira como alguns querem fazer crer, só por ser de Chico Buarque "o-famoso-cantor-e-compositor-musical", mas, pessoalmente, adorei a sensibilidade e humor latente em cada entrelinha, numa imagem quase comovente de uma velhice prolongada e inadaptada aos tempos que mudaram... Alguns críticos referem que o livro tem semelhanças com outros de Machado de Assis, ou com a música "O Velho Francisco" do próprio autor, mas não encontrei assim tantas parecenças, daí a canção ser outra:
Ah, convém salientar que desta vez não houve unanimidade no Clube de Leitura: umas gostaram imenso, outras consideraram pouco interessante, por ser demasiado vago. Opiniões! A próxima sessão será no dia 21 de Novembro, com o livro "A Noite do Teu Aniversário", de Lionel Shriver.
Já estive tentada a comprar, mas não me atrevi, com medo (nem sei porquê) de me desiludir. Mas depois deste teu comentário, acho que vou arriscar a ler. Quem escreve canções assim tem de encantar sempre. (Todavia sendo dele a canção, gosto mais quando a canta a Maria Bethânia, mas... ele é lindo.) (`_^)
ResponderEliminarÉ o lado novo do Xico, a descobrir!
ResponderEliminarChegar à velhice e ter à nossa volta mulheres com paciência para nos ouvir é já um privilégio.
São grandes as mulheres (de Atenas?)
Só por teres feito um post sem falar em eleições, já mereces um prémio! Lol!
ResponderEliminarBeijinhos!
Mas tu trabalhadas para alguma editora?!
ResponderEliminar;)
ando com tão pouca vontade que nem a batelada de Tom Sharpe que cmoprei ainda li...
ResponderEliminarMais uma sugestão literária. Já li nos blogues sobe esta faceta de Xico Buarque mas nunca li qualquer livro dele. Talvez o faça!
ResponderEliminarBeijo
Não é por ser do mesmo país que meu querido Chico Buarque mas é simplesmente "o melhor" :)
ResponderEliminarestarás bem acompanhada de certeza!
Boa semana
Durante a minha infância e adolescência, eu e os meus amigos fizemos vários projetos para a criação de um clube deste tipo. Nenhum deles foi adiante. :)
ResponderEliminarLi, e também gostei. Ainda bem que não houve unanimidade entre os membros do clube, pois, como dizia outro escritor daqui: "toda unanimidade é burra". A certa medida, acredito que ele tem razão.
Um beijo!
O chico canta, o chico escreve, o chico toca, ahhhhh, tão o livro deve valer a pena,sempre gostei dele e a primeira canção que em chamou a atenção e eu gostava de cantarolar era aquela Eu estava à toa na vida O meu amor me chamou, blá blá, mas,seia quase de cor, ainda...Beijinhos nina das leituras...
ResponderEliminarMesmo que te desiludas com o escritor, SUN, com o músico e compositor já é mais difícil... (`_*)
ResponderEliminarA Bethânia canta várias músicas dele, também considero que ela tem melhor voz... :)
Estas são cariocas, KIM, mas o velhote às vezes fala para as paredes... e sim, gostei de conhecer este lado do Chico! :D
Raramente falo em eleições, MATCHBOX32, aqui e ali num problema pontual ligado à politiquíce nacional, que na internacional nem me meto! :))
Beijinhos!
Ná, CAPITÃO, mas com bastante pena minha... ;)
ResponderEliminarUi, MOYLITO, se não lês o Tom, este vai-te interessar ainda menos! :)
Mas tempos assim de paragem na leitura suponho que acontecem a todos, de vez em quando... :D
Pelo que li na net, PAULOFSKI, o anterior do Chico, intitulado "Budapeste", é melhor. Como só li este, não tenho termo de comparação - que, aliás, não gosto de fazer, quando os temas são completamente diferentes... ;)
Beijocas!
Também adoro o Chico, MYLLANA, como músico e compositor. Também gostei do livro, que já me fez "companhia" durante uns dias, mas admito perfeitamente que nem todos gostam ou vão gostar... :D
ResponderEliminarBoa semana para ti!
A diferença é que todas nós já somos mais "crescidinhas", OLIVER, e gostamos de discutir os livros que lemos - nem sempre se arranja companhia para tal! (mas não, Virginia Wolf esteve sempre fora do "cardápio" :)))
Li e gostei bastante do livro, daí até achar que seja uma obra prima recente da literatura brasileira vão outros 5 paus! (como também li em vários artigos, quase todos brasileiros, depois de ler o livro) As publicidades a livros são enganosas, por vezes nota-se que nem foi lido... ;)
Beijoca, amigo!
Também gosto muito das músicas do Chico, LAURINHA, mas o tema do livro não será do agrado de todos! Gostei, mas há quem não tenha gostado. Afinal de contas, todos nós temos a nossa própria sensibilidade, não é? :)
Beijinhos, nina!