quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O CARTEIRO


Alexandre ("o grande", assim o alcunharam os colegas de liceu, dada a sua elevada estatura, mas também com alguma mesquinhez por ser um dos piores alunos da turma) era um rapaz pacato, educado, obediente, risonho, sem qualquer ambição de se tornar doutor: ele só queria trabalhar, namorar, casar, ter um ou dois filhos, talvez um cão. Não desejava nem mais nem menos do que uma vida semelhante à dos seus pais e avós...

Acontece que os tempos não estavam fáceis, encontrar o primeiro trabalho tornou-se numa tarefa mais árdua do que imaginava. Um biscate aqui e ali, pouco mais! Até que um dia a sorte lhe sorriu e foi chamado para carteiro dos correios. Falaram da crise, que para já era só temporário e a recibos verdes, mas no futuro (quem sabe?!) podia integrar os quadros da empresa. Aceitou, agradecido!

Orgulhoso da sua nova profissão e da sua farda, nem a grande sacola de couro lhe parecia pesar ao sair da estação a cada manhã. Concentrou-se afincadamente no trabalho para não cometer erros, mas aos poucos foi relaxando que o serviço não era difícil. Aprendeu a identificar as pessoas que contactava habitualmente no seu "giro" e cumprimentava-as: "Bom dia, D. Isaltina! Já a passear o Farrusco, antes que o calor aperte, não é?" ou "Ah, menina Graça, acho que hoje ainda não tenho carta para si!"; em alguns casos apenas com um leve aceno de cabeça, nem todos reconheciam o humilde carteiro. Mas, acima de tudo, adorava o movimento da cidade, calcorrear as suas ruas, olhar o céu e prever o tempo, ver as flores a florir nas varandas, o vestir e despir das árvores em estações que se repetiam e renovavam, o ondular das cortinas nas janelas onde alguns se escondiam timidamente. Não existia Sol nem chuva, luz ou sombra que o incomodasse. Era feliz e sentia-se realizado profissionalmente!

Até que chegou o dia em que foi despedido! Não queria acreditar. Chorou. O seu chefe lá pôs uns "panos quentes", que não era definitivo, que a empresa agora não podia suportar mais pessoal nos seus quadros por causa da crise, que os peritos legais afirmavam que a contratação poderia ser considerada suspeita, face à legislação vigente. Mas que daí a uns meses, talvez um ano, logo seria revista a situação...

Encontrei-o recentemente, mais de vinte anos volvidos, com uma farda nova e a puxar um trolley, mas não me reconheceu de imediato! Espantou-se quando o chamei pelo nome, mas depois o sorriso alargou-se: "Ah, menina Graça, há quanto tempo não a via!" Trocámos algumas palavras, sem pressa, mas era fatal que o tic-tac do relógio nos chamasse de volta à realidade. Despedi-me: "Fiquei contente de o ver, Alexandre, e de saber que conseguiu o emprego que tanto gostava!" E aí, pela primeira vez, vislumbrei um sorriso retorcido e meio irónico na sua face, onde já se espraiam algumas rugas: "Não, ainda não sou funcionário dos correios... o que vale é que são poucos a gostar deste serviço! As novas tecnologias não ajudam... 'É a crise', dizem eles!"

20 comentários:

  1. o carteiro é sempre uma figura carismática!
    no passado Verão também a minha dealer passou por algo semelhante quando fomos de férias à terrinha dela. por acaso cruzou com o velho carteiro e ficou um tempão a falar com ele e a recordar como eram outros tempos, em que ela era apenas uma miúda, como ele na altura passava algum tempo a falar com o pai dela sobre diversos assuntos...
    e o sorriso foi partilhado pelos dois!

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  2. Pena que as pessoas escrevam cada vez menos.
    Eu continuo a escrever e a mandar postais e sempre com selos nunca com etiquetas.

    O carteiro nestas terras mais pequenas do interior ainda continua a ser a companhia de muitos velhotes que estão em casa e onde ele ainda toca a campainha para entregar o correio e bater dois dedos de conversa ou contar as novidades.

    Gostei dessa tua historia e que ele ainda seja carteiro por muitos anos.

    Beijokitas

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  3. como se chamará uma pessoa com fobia a carteiros? tenho que ir procurar isso.

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  4. Gostei da história. Gosto muito destas pequenas histórias que dizem muito de nós e de quem se cruza connosco nesta vida!

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  5. condado11/12/2009

    Gostei deste pacato, obediente, sem qualquer ambição de se tornar doutor, que só queria trabalhar, namorar, casar, ter um ou dois filhos, talvez um cão... Por aqui diríamos: menuda navalla. Pero em fim. o carteiro não tem culpa é a sua profissão

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  6. já lá tá pontuado .... :) mais tarde volto para te ler

    bj
    teresa

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  7. Olá Amiga

    Gostava que tivesses um conhecimento mais alargado de uma obra existente nesta cidade do Porto desde 1881.

    Se tiveres oportunidade vê no PORTO CANAL, na próxima 6ª feira 13/11, pelas 14h, ou no sábado, pelas 9h30mim a rúbrica BOAS CAUSAS.

    Gostaria depois do teu feed-back.
    Obrigada
    Licas

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  8. Olá amiga Teté
    Esta história comoveu-me. Tenho várias histórias e documentadas com, por exemplo, um livrinho onde os fiscais anotavam (avaliavam)inopinadamente os Carteiros à Moda Antiga, os quais eram abordados em pleno "giro" e tinham de andar com o cabelo bem aparado, barba bem escanhoada, os sapatos bem engraxados e os "amarelos" do boné e da farda a reluzirem. Eram eles que liam as notícias chegadas da Guerra Colonial e muita gente tinha neles um confidente e amigo. Hoje em dia o carteiro não é facilmente reconhecível. O meu pai, após haver sido despedido do Arsenal do Alfeite, onde era desenhador naval, passados três anos conseguiu entrar nos CTT. Esteve 9 anos nos trabalhos mais duros (na reserva) e quando se reformou era Monitor. Percebe-se agora porque me comovi?
    Respondendo respeitosamente ao seu comentadoros MOYLE, as pessoas, de há uns anos para cá, com fobia a carteiros chamam-se ENDIVIDADAS, porque na generalidade são eles (os carteiros) quem entrega as Notificações Judiciais e outras contas muito difíceis de liquidar. São, de alguma forma, os mensageiros das arrepiantes penhoras.
    Gostei muito do conto.
    Beijinhos
    António

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  9. Este podia fazer parte dos meus micro pequenos e médios contos. Está bom e se calhar até é baseado na vida real como as novelas da TVI.

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  10. Infelizmente já não vejo os carteiros. A caixa do correio enche-se de papeis inúteis, contas, facturas, revistas assinadas, mas não de cartas.

    Quem sabe se o Alexandre não foi portador de alguma das cartas da Dona Fernanda.

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  11. VÍCIO, tenho ideia que nas terras mais pequenas o carteiro ainda é uma figura importante, mas aqui nas grandes cidades descaracterizou-se um bocado. Ainda no outro dia a minha mãe estava danada (sem razão), porque lhe foi devolvida uma carta onde se esqueceu de pôr o andar. E lá veio com a conversa que antigamente eles conheciam a morada de toda a gente. Claro que hoje já não... ;)

    Ah, PARISIENSE, a história não é verídica, apenas me baseei num rapaz que conheci em tempos, que andou anos em contratos desses nos CTT e que adorava a profissão de carteiro. Quando falava no assunto até os olhinhos lhe brilhavam. Mas nunca mais o vi (nos intervalos dos contratos, trabalhava num café que já fechou), tenho esperança que tenha conseguido, até porque é verdade que muitos não gostavam da profissão, pelo peso do saco, por aturarem algumas pessoas menos simpáticas, por terem de andar na distribuição em dias de chuva ou muito calor, etc. e tal. :)
    E sim, também sei dessa tua ligação às cartas e aos selos... :))
    Beijokitas!

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  12. Tirando o Garfield e os "endividados" (como diz o António mais abaixo :))), não conheço mais nenhuma, MOYLITO! Será que há denominação própria para elas? :h

    A história não é verídica, RODERICK, só a personagem em si é que tem um fundo de verdade. E sim, antigamente as pessoas conheciam os carteiros da sua zona, hoje em dia nem por isso. Pelo menos nas grandes cidades... ;)

    "Menuda navalla" talvez seja qualquer coisa parecida a "arraia miúda" por aqui, CONDADO! Mas, enfim, se todos tivessem grandes ambições, quem seria carteiro (a par de tantas outras profissões)? :)

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  13. Já lá passei, TERESA! ;)
    Beijocas!

    Lamento, LICAS, mas acho que não tenho esse canal... :)
    Beijinhos!

    É apenas isso mesmo, António, um conto! Embora baseado num rapaz que realmente conheci, há uns 20 e tal anos, que adorava ser carteiro e andou vários anos a entrar e a sair dos CTT (não sei precisar quantos mas mais de 6, talvez 10, não mais), para não o meterem no quadro da empresa. Claro que já pós 25 A, portanto já sem essas exigências de cabelo cortado e barba escanhoada, embora ele usasse o cabelo curto e não tinha barba, bigode ou afins.
    Achei piada a essa das "endividadas", mas não é totalmente verídico porque a essas às vezes já vem a polícia atrás. Digo isto porque já moro nesta casa há 14 anos, e o anterior inquilino pertencia a esse género, ainda não há muito tempo lá voltei a ter a polícia à porta. Entre várias coisas, 130 mil (já não sei se euros ou escudos) de dívidas ao fisco. E quem o vê na rua, pois parece um lord, num bom carro, nariz no ar... Há gente para tudo!
    Beijinhos!

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  14. Tem uma base real, sim, PREDATADO, na personagem e na situação em si de não poder ser contratado como carteiro (profissão que o moço adorava)! :)
    Ah, e nos nano-mini-contos não podia entrar?! (OK, é extenso para tal...) :))

    Olha, PAULOFSKI, aqui nem isso: a publicidade é posta numa caixa própria no exterior do prédio, quem quiser tira o seu exemplar, as contas e o resto está quase tudo informatizado, na poupança do papel. Só os impostos, uma revista ou outra e este ano ainda recebi 3 postais (que me deram muita alegria) e dois ou três livros... :))
    Cartas, nem vê-las!
    (engraçado, li a história da D. Fernanda, que já escreveste há mais de um ano, mas não sei porquê fiquei com a sensação que já a tinha lido. Será que a colocaste em link posteriormente?) :)

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  15. Gosto destes encontros e reencontros, sabe bem imaginá-los.

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  16. Gostei imenso de conhecer, pelas tuas palavras, este carteiro Alexandre, "o grande"!
    Já não se dá a importância que se dava há uns anos, por isso é que gosto e continuo a enviar postais. Por mim, os carteiros terão sempre algo para entregar.

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  17. Talvez! Porventura já tenha feito algum link e deixado ficar na caixa de correio de algum vizinho do blogobairro!

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  18. já andei à procura e não encontro. tenho que arranjar um então :)

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  19. É, às vezes acontecem, mas neste caso não foi verídico, MIKAS! :)

    Ter têm, TONS DE AZUL, mas convenhamos que a profissão hoje em dia anda um bocado desvalorizada, até porque já muito poucas pessoas continuam a escrever cartas ou postais, nesta era informática. E depois, claro, perde-se a parte humana da coisa, aquele conhecimento pessoal que existia, até, como disse o António, aquele confidente que lia as cartas aos que não sabiam ler... ;)

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  20. É possível que seja isso, sim, PAULOFSKI! Até porque há um ano não costumava passar no teu canto... ;)

    Bom, MOYLE, tenho aqui um exemplar da Time que trazia um artigo sobre as fobias, não vem nem carteiro, nem correio, e olha que as há bem esquisitas, inclusivé a do colar da manteiga de amendoim no céu da boca... :))

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Sorri! Estás a ser filmad@ e lid@ atentamente... :)