domingo, 15 de julho de 2012

REINTEGRAÇÃO

Fotografia de Ian Britton

Parabéns, é um menino!” – disse o médico sorridente aos pais da Lurdinhas, que a tinham levado de urgência ao hospital, aflitos, por acreditarem que a filha de 16 anos estava com uma apendicite. A mulher cambaleou e agarrou-se ao braço do marido, enquanto o ouviu pronunciar, quase num sussurro: “Desculpe, senhor doutor, mas está enganado, a nossa filha chama-se Maria de Lurdes...” O médico acenou com a cabeça e atalhou: “Sim! E acabou de ter um rapaz, ainda estão ambos no recobro da sala de partos, mas está tudo bem!” Fez uma pausa e acrescentou: “Daqui a um bocadinho já os chamam para os verem, durante uns breves minutinhos, quando forem transferidos para o quarto e berçário!” Como o casal não retorquiu, deu meia volta e afastou-se, que tinha outros partos a efetuar. Noites de lua cheia, já se sabia que eram assim!

Sentaram-se novamente nas desconfortáveis cadeiras da sala de espera, desorientados, sem coragem sequer para verbalizar os pensamentos que os atingiam à velocidade de um raio. Como é que iam ser agora as suas vidas, num meio tão pequeno, onde toda a gente conhecia a vida de toda a gente, quando a notícia se espalhasse? Na cidade provinciana onde viviam existia uma casta de banidos, com quem ninguém falava, a não ser num eventual atendimento clientelar - mulheres divorciadas, as que trabalhavam no bar noturno, bêbados e mais uns quantos a quem ninguém passava cartão. Definitivamente, Lurdinhas ia entrar diretamente para este grupo e eles com ela. Uma rapariga adolescente e solteira, a ter um filho? Não havia memória de tal ter acontecido entre aqueles com quem conviviam. Dez anos após a revolução de abril e a mentalidade das pessoas da terra pouco ou nada tinha evoluído. Nem a deles, para dizer a verdade...

Apenas tiveram oportunidade de acenar à filha da porta do quarto, pois já passava das duas da manhã e as restantes parturientes estavam a dormir. O neto dormitava serenamente nos braços de uma enfermeira, antes desta o deitar e aconchegar no  respetivo berço. Embora feliz com o nascimento do filho, Lurdinhas também demorou para adormecer. Sabia que para os pais era uma grande desilusão, como para Luis, quando soubesse. Por isso não tinha dito nada a ninguém, durante todos aqueles meses, evitando o desgosto e o receio de propostas de aborto. “Para não estragares a tua vida”, parecia que os estava a ouvir. Eram todos muito católicos, mas às vezes faziam 'vista grossa' nessas questões de princípio, quando lhes tocava por perto. Mas e agora, como iria ser?

A notícia caíu como uma bomba na cidade, logo no dia seguinte: não se falava noutra coisa nos cafés, na rua e em cada esquina, as beatas benziam-se, as más-línguas costumeiras acrescentavam à história dichotes como “aquela sonsa nunca me enganou!” ou “quis apanhar o coitado do rapaz, é o que é!” Nessa mesma tarde, Luis partiu desterrado para casa de uns tios de Braga, por imposição paterna – afinal de contas, também tinha apenas 16 anos. À exceção dos pais e da madrinha - que veio de propósito de Lisboa, assim que soube da novidade – mais nenhum dos amigos de Lurdinhas a visitou no hospital. E foi a madrinha que, mais friamente, apontou uma solução temporária para o problema.  Com as aulas e os exames do 11º ano finalizados, nada impedia Lurdinhas e o bebé de irem passar uma temporada com ela à capital, pelo menos até os ânimos acalmarem. Ela própria tivera de abandonar a sua terra natal em tempos idos, pois a alternativa de ficar acarretava aturar um marido doidivanas, que gastava tudo o que ganhava com as suas múltiplas aventuras e ainda lhe ia à carteira ou à conta bancária, quando o dinheiro faltava.

A família aceitou a oferta, agradecida. Mas a solução temporária tornou-se definitiva, durante os anos seguintes – Lurdinhas conseguiu encontrar um emprego em part-time e continuou a estudar em Lisboa, até acabar o curso universitário. Visitava os pais esporadicamente, mas estes eram mais assíduos nas viagens à capital, para reencontrarem a filha, o neto e aquela boa amiga, que tanto os ajudara.

Lurdinhas criou o rapaz e atualmente trabalha como professora efetiva numa escola lisboeta. Entretanto casou e teve mais duas filhas, vivendo com a família nos arredores da cidade. O filho viajou para Paris, onde realiza um estágio profissional. Este nunca chegou a conhecer o pai biológico, nem Lurdinhas voltou a encontrar Luis...

A 5ª fase da blogagem coletiva promovida pelos blogues da Luma Rosa, da Rute e da Rosélia, na série de "Amor aos Pedaços", desta vez com o tema "Reintegração". A história em si é baseada em factos verídicos, a partir de duas ou três do mesmo género que conheci. Casos mais comuns do que se supõe...

26 comentários:

  1. Um conto muito bonito. Gostei.
    Um abraço e bom Domingo

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    1. Há histórias de vida que quanto mais reais são, mais estranhas nos parecem, ELVIRA! :)

      Abraço e boa semana!

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  2. Uma história que acabou bem!
    Felizmente que os tempos agora são outros!

    Abraço

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    1. Felizmente que estes preconceitos, que estragavam a vida a tanta gente, têm melhorado bastante, ROSA! Mas têm demorado a passar. E toda a gente parecia esquecer-se que uma gravidez não resultava apenas da "vontade" da rapariga ou mulher... :)

      E porque é que não havia de ter um final feliz? Afinal de contas a moça podia ser ingénua, desinformada ou tonta, mas não era uma criminosa... ;)

      Abraço!

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  3. Parabéns por sua contribuição na Blogagem Coletiva Amor aos Pedaços!
    Que continuemos juntas com muito amor no coração!
    bj Sandra
    http://projetandopessoas.blogspot.com.br//

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    1. Parabéns também pela tua contribuição, SANDRA, que já li e comentei! E que haja sempre amor nas nossas vidas! :)

      Beijocas!

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  4. Enfim, acabou. Com êxito da personagem, que não teve que se arrepender do que poderia ter feito.
    Acabou, mas como vivemos em círculos e espirais, encantamentos, desencantamentos, esperanças, questionamentos, se integram e reintegram em nosso cotidiano.
    Vivemos. E sobrevivemos a tudo.
    Obrigado pela participação. E sigamos em Conversas Cartomânticas.

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    1. Bem-vindo, EMANUEL! :)

      É, há histórias que se repetem, na mesma vida ou na geração seguinte, e vamos aprendendo com quase todas elas a sobreviver! :D

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  5. De facto há mais casos destes do que julgamos. Independentemente da maior ou menor aceitação social que tenham e da repercussão que estas situações têm na vida das famílias há um detalhe que a mim me perturba. Como é que ninguém se apercebe da gravidez? Lembro-me da surpresa geral que há uns 25 anos atrás tivemos no serviço quando soubemos do caso da sobrinha de um colega que acabava de ter um filho. A rapariga não tinha contado nada a ninguém, nunca tinha ido a uma consulta pré-natal e foi para o hospital "com dores de estômago".

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    1. Um caso idêntico a esta, LUISA! Mas facto é que as adolescentes nestas idades em que ainda estão a formar o corpo por vezes engordam, e ninguém acha isso muito estranho! Mas olha que conheci uma que escondeu a gravidez até ao fim do próprio marido, que não queria ter mais filhos, e ele também não deu por nada... :))

      A história não acabou tão bem, que eles acabaram por se divorciar! ;)

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  6. É uma história triste, que soubeste contar muito bem e dar a graça de um final feliz... =)

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    1. É a história de uma sociedade ainda bastante preconceituosa e que, felizmente, tem vindo a melhorar aos poucos, BRISEIS! E também de uma certa cultura de desinformação dos adolescentes em questões que então eram tabu, como o sexo! :)

      Mas estas histórias ainda acontecem... ;)

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  7. Gostei do conto,nessa vida nem tudo é como esperamos mas devemos saber dar a volta por cima,assim como a personagem.
    Uma ótima semana,abraço,=)

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    1. Bem-vinda, SUELEN!

      Acabamos sempre por dar a volta, especialmente quando temos 16 anos e uma vida inteira pela frente! Desde que haja pensamento positivo, evidentemente, e se não nos deixarmos abater pelos tropeções de caminho... :)

      Abraço e boa semana para ti!

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  8. Olá, Tetê!

    Apesar da modernidade, ainda continua existindo muito preconceito, e exclusão social, para casos semelhantes. Lurdinhas soube aproveitar o auxílio que lhe deram, e direcionou sua vida de forma especial, de modo que se reintegrou e foi feliz.
    Uma bela história.

    Grande abraço
    Socorro Melo

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    1. Claro que o preconceito ainda continua a existir, SOCORRO! Mas, felizmente, já há uma abertura maior para estes percalços da vida, sem obrigar as pessoas a casar ou ir para um convento, como noutros tempos... :))

      Abraço e sê bem-vinda! :D

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  9. Um amor colocado à prova e assim dedicado não desfez laços. Nas entrelinhas percebo que não deve ter sido fácil a tragetória de vida dessa menina, tão prematuramente cheia de responsabilidades. A maternidade é um grande exemplo de reintegração - A soma de todos os amores e desamores.
    Obrigada por participar da coletiva!!
    Beijus,

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    1. As responsabilidades foram prematuras, sim, LUMA, mas aos 16 anos e com uma vida toda pela frente, só poderia dar a volta por cima! E sair daquele meio tão acanhado, que provavelmente só a arrastaria para baixo... :)

      Foi com todo o prazer que participei mais uma vez! Obrigada a todas vós pela iniciativa! :D

      Beijocas!

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  10. Olá Teté,
    tudo na vida é aprendizagem. Essa menina soube dar a volta por cima e superar obstaculos.
    O que é preciso é nunca desistir. O amor ajuda a encontrar forças onde menos se espera.
    Lindo conto. Grata pela convivência durante os 5 meses de blogagem. E quem sabe não serão 6 meses... no dia 15 AGO passe nos blogs da organização. Em principio teremos uma surpresinha.
    E se prepare para 2013!
    Beijinhos.
    Rute

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    1. É verdade, muitas vezes é com os erros que aprendemos mais, RUTE! :)

      OK, lá passarei! :D

      Beijocas!

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  11. muito bom ela ter escondido a barriga durante 9 meses. devia ter optado por uma carreira política ;P sim, estas estórias são muito frequentes, demasiado frequentes. resta esperar que quem tem a língua comprida acabará por mordê-la. de resto, coro é bom para a Ópera e devemos a vozearia dos "outros" como aquilo que verdadeiramente é: ruído de fundo.

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    1. É, são demasiado frequentes para a informação que a maioria dos jovens tem hoje ao seu alcance, MOYLITO! Quem tem língua comprida, acabará por mordê-la, mesmo! Mas convenhamos que há ruídos de fundo muito aborrecidos... ;)

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  12. Superar com o tempo, reintegrar a sua vida...Não é fácil quando uma jovem passa por isso,mas o melhor de tudo é o apoio da família...O empo passa e tudo é esquecido.
    Paz e bem

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    1. Sim, sem apoio da família é sempre mais complicado, ainda mais na adolescência, BEL! Quanto ao resto, é isso mesmo, o tempo vai atenuando tudo... e ainda bem! :)

      Paz e bem para ti também!

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  13. Olá, Teté
    "UMA GOTA DE ORVALHO NA BORDA DO CÂNTARO"

    Extremamente cansada mas reintegrada... cheguei hoje da Missão...
    Sou-lhe grata e a Deus por ter dado tudo certo.
    Obrigada por termos chegado o fim da BCAP.

    AMAR O OUTRO É RENUNCIAR POSSUÍ-LO, MESMO MORTO".
    Abraços fraternos de paz

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  14. Nada a obrigadar, ORVALHO, participei com todo o gosto! :)

    Fica também em paz!

    Abraço!

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Sorri! Estás a ser filmad@ e lid@ atentamente... :)