quarta-feira, 19 de agosto de 2015

NÚMERO ZERO

"O livro deverá dar ideia de um outro jornal, mostrar como, durante um ano, eu me esforcei para realizar um modelo de jornalismo independente de qualquer pressão, dando a entender que a aventura acabou mal porque não era possível dar vida a uma voz livre. Para isto, preciso que você invente, idealize, escreva uma epopeia, não sei se me faço entender..." É esta a proposta que Simei, o diretor de um jornal que nunca irá sair, faz a Colonna, um jornalista e escritor pouco conhecido, que ronda os cinquenta anos: que seja uma espécie de ghost writter do livro que publicará após a experiência gorada, enaltecendo a sua dedicação ao projeto de jornalismo livre e independente. Que, está bem de ver até pelo teor da proposta, é mera ficção - os números zero do jornal serão financiados por um tal de comendador Vimercate, um indivíduo que tem um império multifacetado entre hotéis, casas de repouso, televisões locais e publicações variadas, mas cuja ambição desmedida pretende levá-lo mais longe, nomeadamente a entrar no mundo da alta finança, como por exemplo em bancos, grandes jornais diários ou canais televisivos. Os números zero do referido jornal servirão assim os seus interesses, podendo eventualmente ser mostrados às pessoas certas, em momentos oportunos. Como forma de pressão, para não falar em chantagem...

É assim que de um dia para o outro a redação do "Amanhã" se instala no open space de um palácio no centro de Milão, onde se cruzam jornalistas que acreditam piamente em todas as teorias da conspiração havidas e por haver, que apesar da sua inteligência são despachados para a astrologia e necrologia pelo facto de serem do sexo feminino, ou até aquele que se desconfia ser espião não se sabe bem de quem, mas que convém tratar com algum cuidado. Nenhum destes elementos está a par do contrato entre as "chefias" e Colonna, também ele um pobre diabo que acaba por aceitar o seu humilhante papel, para aumentar o seu até então parco pé de meia.

Se o romance de Umberto Eco tivesse sido escrito no tempo em que decorre a ação (de 6 de abril a 11 de junho de 1992) poder-se-ia dizer que se tratava de uma premonição de como muitos meios de comunicação social iriam descambar numa espécie de pasquins dos poderosos, que através deles tentam influenciar a opinião pública. Mas não, o escritor escreveu o livro em 2015, pelo que no fundo retrata ironicamente uma realidade cada vez mais notória, explicando também o descrédito que alguns desses meios hoje têm junto do grande público ou, pelo menos, do mais informado. Em suma, como a contracapa do livro indica "este é o manual perfeito para o mau jornalismo que, gradualmente, nos impossibilita de distinguir uma invenção de um directo".

A temática pode não ser muito original, mas a história em forma de romance aligeira um pouco a crítica evidente, enquanto a ironia sempre patente nestas 163 páginas contribui para tornar a leitura mais prazeirosa, quiçá até um pouco alucinada. Muito bom! 

Citações:
"A questão dos telemóveis não pode durar. Primeiro, são caríssimos e só poucos têm meios para os comprar. Segundo, as pessoas irão descobrir em breve que não é indispensável telefonar a toda a gente a todo o momento, sofrerão com a perda de conversação privada, cara a cara, e no fim do mês vão aperceber-se de que a conta atingiu cumes insustentáveis. É uma moda destinada a esgotar-se no espaço de um ano, no máximo, dois."

"Isto é, seria bom sugerir que, em vez de dizer caralho todas as vezes que se quer exprimir surpresa ou desapontamento, se deveria dizer «Oh, órgão externo do aparelho urinário masculino em forma de apêndice cilíndrico inserido na parte anterior do períneo, roubaram-me a carteira!»"

"A questão é que os jornais não são feitos para difundir, mas para encobrir as notícias. Acontece o facto X, não podes deixar de falar nele, mas embaraça demasiada gente, e então, nesse mesmo número, metes grandes títulos de fazer eriçar os cabelos, mãe degola os quatro filhos, talvez as nossas poupanças acabem reduzidas a cinzas, [...] e por aí fora, a tua notícia afoga-se no grande mar da informação."

24 comentários:

  1. Não conhecia. Mais um pedido a ser feito à biblioteca. Não me recordo da última vez que li um livro com cento e tal páginas. What a breeze!!

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    1. É verdade, CATARINA, também é invulgar ler livros tão... fininhos! :)))

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  2. Ora então cá está o "post" (embirro com este termo), do livrinho e que, segundo dizes, é tema para parcos comentários.
    Mas isso compreende-se porque quem não frequenta/frequentou a obra pouco ou nada tem para comentar.
    É o meu caso; não li e não me parece que o lerei (pelo menos nestes tempos mais próximos).
    Assim o meu comentário é do género:
    -vim responder ao anúncio só para dizer que "não contem comigo".
    Beijokas e sorrisos, em profusão.

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    1. Verdade, KOK, os posts sobre livros são menos comentados e imagino que seja porque nem todos gostarão de ler. O que não é crime,evidentemente! :)

      Beijokas com sorrisos lidos nas entrelinhas!

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  3. Ando com uma preguiça monumental! Realmente é verdade aquela máxima: Quanto menos se faz menos apetece fazer.

    Ando a ler "A Marcha" de Daniel Silva, quando dou por mim já estou esticada no sofá. mas isto lá são férias que se apresentem?

    Admiro a persistência com que 'devoras' livros e nem o calor te dá moleza.
    Acho que atingi o limite de falta de paciência, tal como o Variações, só estou bem onde não estou! Para quem lia livros de setecentas e tal páginas, agora leio meia dúzia, pouso o livro e vou dar uma volta. Nem me reconheço!! :(

    "Oh, órgão externo do aparelho urinário masculino em forma de apêndice cilíndrico inserido na parte anterior do períneo, roubaram-me o poder de concentração!...:))

    Beijocas e boas leituras.

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    1. Olha, por acaso até tive uma semana em que li muito pouco, porque o álbum que estava a fazer deu-me "água pela barba" - mas esse já está acabado.

      E pode não parecer, mas de vez em quando também tenho uma certa preguiça para a leitura. Felizmente, não dura é muito... :)))

      Boa citação,essa! :D

      Beijocas

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  4. Teté,
    cheguei aqui através do blogue da Luísa, "À Esquina da Tecla" que sigo à bastante tempo e como um blogger chama outro blogger, olha aqui estou eu...

    Do Umberto Eco só li o "O Nome da Rosa" e como não passo sem uma boa leitura gosto das partilhas e sugestões de livros.

    Abç

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    1. Bem-vinda, MZ!

      Somos duas que seguimos o blogue da Luisa já há bastante tempo... :)

      Também li "O Nome da Rosa", há muitos anos, mas não consegui ler "O Pêndulo de Foulcault" (não estava a perceber patavina), pelo que este foi uma agradável surpresa.

      Abraço

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  5. Não conheço, parece interessante, fica a dica!
    Tenho andado muito preguiçosa para ler, mas nestes dias que vou à praia com os netos, aproveito para ler alguns que tenho em fila de espera, hoje comecei a ler "Tigres Sob Um Céu Vermelho" de Liza Klaussmann.

    Um beijinho Teté
    Adélia

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    1. Estás a ver, FLOR DE JASMIM? Esse não conheço, nem o livro, nem a autora.Isto os livros são tantos, que qualquer conversa sobre eles dá pano para mangas... :)

      Beijocas e boas leituras!

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  6. Parece um bom livro (do autor li e gostei muito de O Nome da Rosa - também vi o filme).
    um beijinho e boa-noite
    Gábi

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    1. Também li o livro e depois vi o filme, REDONDA. Quando é ao contrário, nem sempre tenho pachorra, embora ache que normalmente os livros são muito superiores aos filmes... :)

      Beijocas

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  7. Também tenho uns livros do autor lá em casa em lista de espera.
    Beijocas

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    1. Pois, eu depois do fiasco do "Pêndulo..." nunca mais tinha pegado num livro dele, PEDRO. :)

      Beijocas

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  8. Fiz-te a pergunto num dos meus posts mas não reparaste.
    Teté, estou com curiosidade, qual foi o livro de Daniel Silva que leste?

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    1. "As regras de Moscovo", CATARINA.

      O que escrevi sobre ele podes ler aqui: http://pequenoquiproquo.blogspot.pt/2010/07/as-regras-de-moscovo.html.

      Ainda dei conta de um anónimo pouco simpático que não gostou da minha opinião. Temos pena! :)))

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    2. Estive a ler a tua opinião. Não pude deixar de sorrir enquanto lia. You really did not mince your words, girl !! : ))
      Estou a gostar imenso destes livros – a sério!!! – talvez até porque os estou a ouvir e como sabes, os livros áudio são dramatizados e quando os narradores são bons, os livros ganham outras dimensões.
      Pelos vistos, passo a ser uma mentecapta! : ))) Eu até estou a gostar do Grabriel Allon!!!
      Americanices! Eu sei! Estou aqui tão perto e há muito tempo que sofro as suas influências, muito mais que as europeias apesar da globalização e a facilidade de obter informações num só clique!!
      Reparei – mas não li a tua opinião – no livro “O sol cai no Tibete”. Como o Tibete sempre teve um lugar especial no meu coração, vou já requisitá-lo.
      Quanto ao Daniel Silva, as informações que li foi que nasceu em Michigan e que os pais eram professores. Num outro site li que tinha sido adotado por um casal açoreano.
      Bjos : )

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    3. Ainda bem que gostas, CATARINA! Pessoalmente não deixo de achar este livro bastante maniqueísta, aquela de ele também saber pintar tirou-me do sério. E sim, em relação ao conflito israelo-árabe não me parece haver heróis versus terroristas, mas sim uma série de extremistas violentos de ambos os lados. Bem sei que a propaganda americana não é essa, nem a que estes livros pretende "vender", e portanto considerei muito faccioso. É possível que com a história ouvida e dramatizada não notasse tanto, mas assim...

      Quanto ao autor, li essa informação na net ou na editora, mas a atual é ligeiramente diferente, só refere que é filho de açorianos emigrados em Michigan. Agora também diz que foi criado como católico, mas que se converteu ao judaísmo em adulto. E nota-se bem! Mas enfim, é um pormenor se nasceu num local ou noutro, obviamente não inventei.

      Mas lá tá: gostos são gostos, embora em termos de leituras tenhamos alguns parecidos, não quer dizer que sejam todos idênticos... :)

      Beijocas

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    4. Hoje estive a ler um pouco mais sobre Daniel Silva e os vários protagonistas da série. A opinião de alguns é que a biografia imaginária, ou de ficção, de Gabriel Allon poderia ter sido baseada (há, de facto, muitas semelhanças) em dois espiões de verdade, associados à Mossad, serviço secreto israelita: Mike Harari e Peter Malkin. Este último dedicou-se à pintura e usava a profissão de pintor como “disfarce”. A wikipédia tem algumas informações muito interessantes sobre eles. Malkin criou e liderou a Operação Ira de Deus (Operation Wrath of God) logo após o Massacre de Munique em 1972.

      Nos livros de Daniel Silva, esta operação é mencionada várias vezes.

      Pois, como dizes, gostos não se discutem.

      Este livro que mencionas ainda não o li. Comecei pelo último da série Gabriel Allon, depois requisitei uma série deles e vou lendo à medida que vão chegando, nem sempre por ordem cronológica.

      Para além de todas as razões por que gosto do que estou a ler, agrada-me bastante a forma como ele escreve os diálogos. Uma forma muito natural de dialogar!! : ))

      I am totally hooked!! : )

      E agora vou dormir... Já devia estar no segundo sono e ainda ando por aqui! : )

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    5. Pois, por acaso até acho possível que as histórias sejam baseadas em espiões reais, CATARINA. O que me custa a entender é porque eles consideram que a MOSSAD e a CIA são serviços secretos "bons" e os outros são "maus", terroristas, etc.e tal,quando a maneira de agir é idêntica de ambos os lados.

      Aliás, ainda há pouco tempo li um texto mais ou menos humorístico em que referia que os países tinham serviços secretos, o Reino Unido e os EUA "inteligência", em referência aos nomes utilizados... :)

      Não me lembro de nada muito notório em relação aos diálogos, mas é natural que ele escrevendo em inglês tu notes mais essa particularidade - ao ler os livros traduzidos algumas dessas questões perdem-se, né?

      Bons sonhos! :)

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  9. Tenho vários livros do Umberto Eco, mas este ainda não tenho.

    Ficando pela Bela Itália.

    Vale a pena comprar o DVD de "A GRANDE BELEZA", que estreou em Portugal em Fevereiro de 2014, para recordares uma Roma exultante mas também decadente, bela mas também presunçosa e profundamente hedonista.

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    1. Este é bem recente, EMATEJOCA! :)

      Não costumo comprar DVDs, mas esse está a tentar-me... :D

      Beijocas

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  10. Estive com ele na mão há poucos dias mas acabei por fazer outra escolha de compra. No entanto, é provável que acabe no meu cesto. :)

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Sorri! Estás a ser filmad@ e lid@ atentamente... :)