De Salazar tenho a vaga recordação de um velho senil, que iniciava todos os discursos com um “portugueeeses e portugueeesas”, com voz trémula. Para além de uma fotografia presente na sala de aula da primária. Sala essa que, num dia de mau humor da professora, foi palco de um castigo de 56 reguadas a uma aluna de 8 anos, por não ter feito o TPC. E onde também pude presenciar, quase diariamente, a forma didáctica que a professora utilizava para ensinar uma menina de 6 anos, com dificuldades de aprendizagem: ao estalo, sem tirar nem pôr! Comparativamente, o homem ter caído da cadeira e ter morrido dois anos depois, não me afectou.
Lisboa era uma cidade aparentemente calma e pacífica, a guerra estava lá longe, em África. E da qual só nos apercebíamos, quando apareciam na televisão as mensagens de Natal dos soldados em combate, a desejarem muitas “propriedades” aos familiares. Os dissidentes do regime ou estavam presos ou exilados noutros países, apenas alguns agiam nas sombras.
De bom mesmo, eram as férias de Verão, três meses inteirinhos, a maior parte do tempo a brincar na rua com a miudagem da vizinhança. Isto porque os adultos tinham poucas férias, 8 ou 15 dias, que ou serviam para alugar uma casa perto da praia, ou visitar a família na terra. De Lisboa a Vila Praia de Âncora, onde o meu pai nasceu, demoravam-se 7 horas de carro, sem contabilizar o tempo das paragens, para almoçar, esticar as pernas, etc. A auto-estrada Lisboa/Porto parava em Vila Franca de Xira. Na capital, havia Metro, que visto numa configuração linear, parecia uma fisga – uma linha começava em Sete Rios, outra em Entrecampos, encontravam-se na Rotunda e ia até aos Anjos, posteriormente até Alvalade. Andava sempre atulhado de gente. Como alternativa, existiam os eléctricos amarelos onde se podia andar à “pendura”, muito lentos, ou autocarros verdes, de um ou dois andares, sendo que estes tinham limite de passageiros. Em todos estes transportes apareciam carteiristas, “profissão” de muito mérito, se fosse dedicada à magia em palco... Os polícias sinaleiros foram substituídos por semáforos, uma grande “modernice”.
A televisão era a preto e branco, só existiam dois canais, com um horário de emissão reduzido às horas de almoço e jantar, a acabar perto da meia noite. Aos Domingos alargava-se pela tarde, com filmes do Fred Astaire e quejandos. Os pontos altos da RTP eram o Festival da Canção nacional, o internacional, o concurso de misses e o Natal dos Hospitais.
O meu liceu era dos poucos a terem turmas mistas, arrojadíssimo para a época. Foi lá que tive a primeira visualização da PIDE, com um cerco que fizeram à escola, supostamente porque entraram para lá uns alunos do Técnico. Professores e alunos em pânico, alguns a tentarem fugir, recebidos à porrada nas escapatórias possíveis. Valeu a fibra das professoras, que não nos deixaram sair porta fora esparvoeirados. Cerca de um ano depois, os alunos da minha turma que pediram dispensa a Moral e Religião (já se podia, outra modernice!), conheceram umas faces do MAESL, para além dos dixotes inscritos nas portas das casas de banho. Éramos 6 e nós que não a tudo, nem MAESL, nem tínhamos visto nada para os matarruanos que nos vieram interrogar logo de seguida.
Bons velhos tempos? Uma sociedade hipócrita, preconceituosa, capitalista, sem direitos para as mulheres e para o povo, sem liberdade de expressão ou democracia, com uma guerra que não tinha fim à vista?
Saudade, tenho da ingenuidade desse tempo, em que acreditava que a revolução dos cravos ia resolver os problemas do País, para sempre...
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No anterior blog, no dia 25 de Abril deste ano.