A notícia é antiga, mas completamente disparatada: cerca de 46% dos portugueses inquiridos numa sondagem consideraram que se vivia melhor há 40 anos em Portugal do que actualmente! Mesmo descontando os "velhos do Restelo" e aqueles que nem eram nascidos na altura, mas não se inibem em mandar uns palpites para o ar, a percentagem é demasiado elevada! Memória curta ou ignorância do passado?
Então como era a vida deste país no início dos anos 70? O facto de estar em plena guerra colonial (sem fim à vista), só por si, é esclarecedor: milhares de jovens soldados partiam para aquelas terras distantes, na incerteza se algum dia voltariam ou como, o que naturalmente era um drama para os próprios e também para as suas famílias. Ditadura é ditadura, e nem por ser marcelista em vez de salazarista era mais branda: a PIDE só trocou de nome para DGS, mas os métodos mantiveram-se - vigiar, perseguir, interrogar, prender, torturar ou eventualmente até matar todos os opositores ao regime, ou meros suspeitos. A censura também era feroz nos meios de comunicação social, qualquer crítica vaga (ou tema do desagrado dos governantes) era simplesmente suprimida com o tristemente famoso "lápis azul", sem nunca ser publicada ou divulgada. Portanto, o clima era de medo!
O analfabetismo rondava os 26% da população (nos últimos censos, de 2001, já tinha baixado para 9%). A gente do povo trabalhava de sol a sol em troca de parcos salários, num país ainda imensamente rural, raramente os seus filhos tinham oportunidade de seguir os estudos para além da escola primária, começavam a trabalhar prematuramente para ajudar ao sustento familiar. Para fugir a esse destino fatídico, muitos emigravam para o estrangeiro ou tentavam a sorte nas grandes cidades. Mas os direitos dos trabalhadores eram inexistentes, o que significava que os patrões conseguiam abusar mais, portanto normalmente tinham de se sujeitar a serviços humildes e mal remunerados, podendo ser despedidos a qualquer momento. Os horários eram prolongados e dia de descanso era só ao Domingo. Embora no funcionalismo público e em algumas grandes empresas já houvesse a "semana à inglesa" - trabalhava-se mais meia hora por dia, para ter a tarde de Sábado livre. Na classe médio-burguesa as regras eram idênticas, mas muitas mulheres ainda não trabalhavam fora de casa, dedicavam-se a tomar conta dos filhos e a ser "fadas do lar", mas também elas sujeitas aos ditames dos maridos - sem se poderem divorciar, que o Estado e a Igreja não permitiam, a velar pela moral e bons costumes. Eventualmente tinham criadas (as tais raparigas da província, que mal sabiam ler ou escrever) para as auxiliar nas tarefas domésticas, dependendo da situação monetária familiar. Luxo e ostentação estavam reservados apenas a meia dúzia de famílias ligadas ao regime e ao poder económico. Como sempre...
Água canalizada, esgotos ou luz não chegavam a todo o território nacional nem à casa dos mais pobres, com graves consequências para a higiene e saúde de toda a população. Consequentemente, televisores ou frigoríficos nem todos possuíam, máquinas de lavar roupa ou louça estavam nos primórdios. Nem vale a pena referir os telefones, quase circunscritos às grandes cidades.
Em relação a transportes, o número de carros era muito menor, logo também o de ruas e estradas. Daí que fazer Lisboa-Vila Praia de Âncora (no distrito de Viana do Castelo) ou vice-versa num carrito (imagino que em grandes bólides não seria muito diferente), fosse uma aventura para demorar cerca de 7 horas, fora as várias paragens. Lisboa tinha comboio para todas as zonas do país e Espanha, eléctricos amarelos, autocarros verdes (alguns de 2 andares, como em Londres) e uma rede de metropolitano em Y, que terminava nos Anjos, em 1972 prolongada até Alvalade. Este sempre a abarrotar de gente, até porque os eléctricos eram agradáveis para as funções que ainda mantêm hoje, em zonas restritas da cidade: lentos passeios turísticos!
Obviamente que muito mais haveria a acrescentar e nem tudo era mau nessa época! Mas a pergunta é outra: esses 46% de inquiridos têm a vaga noção do que era essa vivência de há 40 anos? Idealizar um passado feérico, que nunca existiu realmente, é um erro - o progresso veio para ficar, felizmente! O mais que podemos tentar, é limar as arestas mais bicudas de um presente tendencialmente consumista e de um capitalismo sem freio...