"Já se foram todos embora. Os meus amigos, os vizinhos, os donos das lojas, o mecânico, o barbeiro, o padre, todos. Nós também já não devíamos cá estar." O narrador é Rui, um adolescente de 15 anos, que viu partir todos, enquanto ele, os pais e a irmã ficaram para trás, em Angola, no decurso de 1975. Mas os tiroteios diários e os relatos das atrocidades perpetradas pelos pretos na população branca acabam por os convencer da urgência da partida. No próprio dia em que a planeiam, um grupo de revoltosos bêbados algema e prende Mário, o pai, por o confundir com o carniceiro de Grafanil. O tio Zé consegue levar a irmã e os sobrinhos ao aeroporto, ainda atarantados com a inesperada prisão, para apanharem o avião para a metrópole. A ponte aérea que trouxe meio milhão de pessoas a Portugal, nesse ano...
É assim que começa este romance de Dulce Maria Cardoso, que descreve magistralmente um período conturbado da nossa História, vista pelos olhos do adolescente retornado, que não tem para onde ir, acabando por ser alojado num quarto de hotel, com a mãe e a irmã. Um hotel de 5 estrelas, no Estoril, que alberga o triplo dos hóspedes para que tem capacidade. A diretora recebe-os com um longo discurso moralista, afirmando que ainda devem agradecer a Deus a sorte que têm por estarem num hotel de luxo - ao contrário de outros retornados alojados em parques de campismo ou pensões miseráveis - e explica as regras a que têm de se sujeitar, sem no entanto perder a pose de grande dama. Os meses passam e a inquietação sobre o destino do pai e a revolta com as condições cada vez mais deterioradas dos serviços e instalações do hotel cresce, ao mesmo ritmo que o pouco dinheiro que trouxeram desaparece. Para Rui, as aulas também não correm pelo melhor, com professores preconceituosos, que tratam os alunos vindos das ex-colónias por retornados, sem se darem ao trabalho de decorar os seus nomes. Porém, a irmã, Milucha, tem-se aplicado e consegue boas notas. E a mãe, com aquela doença que a família silencia, volta a ter um dos seus ataques e é ele que tem de fazer de homem da família, para a acalmar, tal como o pai fazia.
Entre recordações de Luanda e dos seus antigos amigos Lee e Gegé, as novas brincadeiras com o Mourita e o Paulo, também eles a viver nas mesmas circunstâncias, o despontar do interesse pelas raparigas, os primeiros encontros sexuais, o dia a dia de todos os companheiros de percurso - crianças, jovens, adultos e velhos - enfiados no hotel sem conseguir trabalho, ocupando-se a jogar à sueca ou a organizar piquetes para vigiar os contentores onde guardam os parcos haveres que conseguiram trazer de África (repetidamente assaltados ou vandalizados pelos "de cá"), tornam as 267 páginas deste livro num retrato muito próximo da época e da vivência de muitas dessas famílias...
Não sendo propriamente um romance auto-biográfico - Dulce Maria Cardoso nasceu em 1964, em Trás-os-Montes, mas foi viver para Angola ainda em tenra idade, regressando também a Portugal em 1975 - é lícito supor que essa experiência e/ou outras das quais teve conhecimento ao longo desses anos, tenham dado origem a estas páginas. Muito, muito bom!
CITAÇÕES:
"O aspirador era um dos sonhos de que a mãe nunca se esquecia, nenhuma vizinha tinha ou queria ter um aspirador, vassoura e pá chegam bem para se limpar uma casa, vassoura, pá e uma preta, claro."
"A puta da professora, um dos retornados que responda, como se não tivéssemos nome, como se já não bastasse ter-nos arrumado numa fila só para retornados. A puta a justificar-se, os retornados estão mais atrasados, sim, sim, devemos estar, devemos ter ficado estúpidos como os pretos, e os de cá devem ter aprendido muito depois da merda da revolução, se for como em tudo o resto devem ter tido umas lindas aulas."
"[...] a mãe do vosso pai teve nove filhos, nove bocas para comer e dezoito braços para trabalhar, só se deitava a conta aos braços, que às bocas podia-se roubar quase tudo, umas rodelas de cebola numa côdea de pão calavam os roncos das barrigas. Se o Vitor tivesse ouvido a mãe saberia que nada nem ninguém obriga mais do que a fome e que o pai embarcou no Pátria mais obrigado do que qualquer soldado."
Desta vez o Clube de Leitura teve um quórum reduzido e nenhum consenso: desde os que acharam "chato", a outra que achou o final despropositado (embora ela própria conheça uma história verídica semelhante) e eu e outra que adorámos. Enfim, há gostos para tudo... e, se calhar, histórias que a maioria dos portugueses ainda prefere ignorar!
O próximo encontro ficou agendado para dia 29 de setembro, com o livro "A Conspiração Contra a América", de Philip Roth.