Miguel Torga (pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha) manteve uma longa e prolífica carreira de escritor, poeta, dramaturgo, ensaísta, contista e memorialista e é sempre uma boa aposta de leitura. Mesmo quando o próprio escritor considera esta sua novela de 1943 "o elo mais fraco" da sua vasta obra: "Escrito de uma assentada há mais de quarenta anos, na idade em que os atrevimentos são argumentos, nele deixei a nu toda a fantasia descabelada e toda a canhestrez expressiva que se tem impunemente na juventude. Mas tão embaraçado fiquei, quando na maturidade o reli, que fiz os possíveis por esquecê-lo e por que fosse esquecido. Hoje, porém, nesta vertente da vida em que se olham com lucidez e benevolência os verdores da mocidade, resolvi recuperá-lo. Pacientemente, limpei-o das principais impurezas, dei um jeito aos comportamentos mais desacertados, tentei, enfim, torná-lo legível. Por ele e por mim. Por ele, porque, apesar de tudo, conta uma história portuguesmente verosímil, dado que somos os andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior; por mim, porque nenhum autor gosta de deixar no espólio criações repudiadas." (no prefácio do livro, de maio de 1985)
Nascido e criado em Penedono, no Alentejo, aos 20 anos Ventura é chamado a Lisboa para cumprir o serviço militar. Analfabeto, sempre trabalhou como pastor ou com a enxada, mas é até com um certo entusiasmo que abandona a sua terra - tem sede de aventura na guelra. Corajoso e desenrascado até começa por se dar bem, mas a indiferença a algumas ordens de comando - se não sabe o que escrevem na sua caderneta, porque é que há de preocupar-se? - e as rixas nos bares acabam por lhe dar guia de marcha para Macau. A constante rebeldia de Ventura torna-o desertor, embarcadiço, garagista, criado de mesa numa casa de pasto e sócio da mesma, traficante de armas ou drogas, por terras da China. Embora, infelizmente, o pelo na venta que trouxe da sua terra natal também deixe um rasto de sangue atrás de si, somando aventuras e desventuras num território em conflitos permanentes, na época. Até ao encontro com Tatiana, a mulher da sua vida, e ao nascimento de Sérgio, o filho de ambos...
175 páginas divididas em três partes, cada uma com diversos pequenos capítulos que constituem a história do senhor Ventura, não isenta de crimes e infelicidades várias - o "cor-de-rosa" não condiz com a personalidade viril (para não dizer abrutalhada) do protagonista. Também é óbvio que uma novela dá aquela sensação de romance pouco amadurecido, mas Torga é um mestre como poucos. Ou seja, não será o livro da vida de ninguém, mas de agradável (e rápida) leitura é de certeza!
Citações:
"Desígnios complicados lá do alto, que o alentejano só entendeu quando se encontrou de coração a sangrar pela primeira vez."
"A mesma coisa de sempre: vêm, matam, esfolam, arriscam a vida, e acabam nas mãos de uma marafona qualquer..."
"Desde que se conheciam que no Farrobo, do céu, caía apenas chuva e vinha sol."
"Você parece uma borboleta: tinha na sua terra o sol inteiro para se aquecer, e vem queimar-se numa labareda..."
Admiro Torga com escritor e como homem coerente , eternamente livre.
ResponderEliminarLi muita coisa dele, incluindo alguns dos "Diários": lembro-me da lúcida observação que faz quando vê um soldado francês esbofetear um árabe e das consequências que tudo aquilo teria mais tarde ou mais cedo.Como veio mesmo a acontecer, inevitavelmente.
Bom dia para ti.
Somos duas a admirar Torga, SÃO. Li o romance, três livros de contos e agora esta novela dele, mas até na (pouca) poesia que leio o acho um expoente máximo... :)
EliminarOs diários nunca li, mas posso pensar nisso. E sim, homens lúcidos sabem que essas atitudes prepotentes cedo ou tarde têm as suas consequências... :)
Bons sonhos!
Olá amiguita!
ResponderEliminarQuis um dia conhecer Miguel Torga e fui visitá-lo a S. Martinho da Anta.
Não o encontrei! Nem no cemitério. Mas ele estava lá. Talvez ele não me tenha querido receber.
Na casa onde morou, uma pequena vivenda, bem conservada e com um jardim arranjado, nem vivalma.
É que por detrás do excelente escritor e médico que não cobrava consultas a quem as não podia pagar, está uma pessoa austera e nada simpática (a fazer-me lembrar Saramago).
Os "velhos" da terra lá me fora falando do orgulho que sentiam em tal filho, mas não escondiam o pequeno senão da sua pouca simpatia.
Claro que quando coloco na balança o deve e haver do conceituado escriba, o prato da cultura logo denuncia o lado mais forte.
É sete um dos meus defeitos.
Não consigo dissociar as coisas, mesmo quando uma delas faz esquecer todas as outras. No entanto, habituei-me também a aceitar as pessoas como elas são ou foram. Se gostamos delas, temos de aceitar os defeitos.
Apesar de tudo, Adolfo Vieira da Rocha, será sempre a torga da sua revolta contra os Bichos que não amava.
Beijinho Teté
P.S. A Oeste nada de novo, apenas a certeza do que está para chegar - mas também a convicção de que é mais uma batalha para vencer.
Querido Kim.
EliminarCorajoso e lutador, como sempre foste, não tenho dúvidas de que sairás vitorioso desta batalha. Força, Amigo!
Beijinho.
Teté, desculpa por ter ocupado o teu espaço de resposta, mas não resisti à vontade de deixar ao Kim umas palavrinhas de ânimo.
Abraço a ambos.
Desconhecia essa faceta da pouca simpatia do homem, KIM, mas pessoalmente dissocio muito bem da do escritor. A bem dizer, não conheço pessoalmente quase nenhum escritor, não faço a menor ideia se são simpáticos ou não. Nem acho que seja muito relevante. Saramago, que não consigo ler como sabes, também não me era particularmente simpático, até porque me lembro ainda bem da razia de jornalistas que fez no "Diário de Notícias" e da arrogância das declarações que fez na época. Mas não é por isso que não o consigo ler, mas simplesmente porque o seu modo de escrever me dá sono - talvez por não o entender muito bem!
EliminarRecentemente Alice Vieira escreveu uma biografia sobre Enid Blyton (a minha escritora preferida, na infância), em que se descobre que a mulher vivia num mundo à parte e... detestava criancinhas! Mas isso não muda nada na minha admiração em relação a ela como escritora... :)
Mas gostei dessa tua resenha sobre facetas menos admiráveis de Adolfo Coelho da Rocha!
Beijocas, amigo!
ps - e é mesmo assim que tem de ser encarado, Kim! Desejo-te muita força para o que aí vem e acima de tudo um espírito bem positivo, amigo. Nós estaremos todos a torcer por ti!
JANITA, não há necessidade de pedidos de desculpa, todas as palavras de ânimo para um amigo comum são bem-vindas! :)
EliminarBeijocas!
Mistério da leitura desvendado. :)
ResponderEliminarUm mistério muito mal amanhado, deste vez, LUISA! Mas pronto, está resolvido... :)
EliminarOlá, Teté!
ResponderEliminarAdoro Miguel Torga e tudo o que dele já li. Por várias vezes transcrevi no meu espaço alguns dos seus contos e poesias, especialmente, Poesia Ibérica, na qual Saramago também participou.
O nosso querido amigo Kim lembrou e bem, a sua profissão de médico, da qual nunca recolheu dividendos já que a sua verdadeira paixão foi sempre a escrita.
Este livro que divulgas é uma lacuna no meu conhecimento da sua obra. Depois do que escreveste, fiquei dentro da história e é quase como se o tivesse lido!:))
Beijos!
Este foi um dos que comprei baratinho na Feira do Livro deste ano, em hora de descontos. Ou acho que foi, que este ano exagerei um bocado na dose, embora já tenha lido bastantes, JANITA... :)
EliminarTambém sou fã de Torga, até da sua poesia gosto (da que li). Mais fã que isto é impossível... :)))
Beijocas!
Torga fará parte da minha lista, mas este livro não li
ResponderEliminarBeijinhos e bom FDS
Sempre o conheci mais como contista e poeta, CARLOS, só há pouco tempo li o romance e agora esta novela, CARLOS. Estou a pensar seriamente ler um dos seus diários, embora não seja género que aprecie... :)
EliminarBeijocas!
ah...bem, pelo menos não palpitei um espanhol ;))
ResponderEliminarli os 'Novos contos da montanha' e poesia...gosto (mais do que do Saramago) a marca dele ficou por Coimbra ...
bj*
Era preciso ser um bocadinho distraída para só dar duas pequenas pistas e ainda me enganar numa delas, TÉTISQ! :)))
EliminarLi esse e outros dois de contos, "Vindima" e agora este, para além de alguns poemas (não leio livros de poesia, vou lendo aqui e ali). Mas sempre gostei de tudo o que li dele... :)
Beijocas!
Tb li “Os novos contos da montanha” adquirido da biblioteca daqui. Este não conhecia.
ResponderEliminarEsse chegou a ser de leitura obrigatória no liceu, mas como na livraria também me enganaram, li também "Os Contos da Montanha", CATARINA. E "Bichos". Não será para já, mas estou a pensar tentar ler um dos seus diários... porque gosto imenso de tudo o que escreve! :)
EliminarNão conhecia...e eu que até conheço razoavelmente a obra de Miguel Torga!
ResponderEliminarToma lá para aprenderes que és uma ignorante! :)
Abraço
Nem eu, até o encontrar na Feira do Livro, ROSA! Como vi que era em prosa... foi logo a seguir! :)
EliminarIgnorância nada, não podemos estar a par de tudo o que se publica ou foi publicado, por muito que se tente! ;)
Abraço